CLÁUDIO,
Não vou poder estar hoje aí, em Mértola. Logo hoje,
que é data redonda e fazes 80 anos. Ligamos muito a essas coisas, e logo hoje é
que falho. Ainda assim, e como este dia marca a tua entrada na nona década,
achei que devia escrever-te esta carta. Pública e aberta. Normalmente, carta
aberta é pancadaria. Não é este o caso. Não é, também, uma carta laudatória,
nem nostálgica. E só é novidade porque, nestas coisas, prefiro a discrição.
Recuemos umas décadas. O Diretor de História da Arte e
tu entraram na aula. Ele fez as apresentações: “este senhor chama-se Cláudio
Torres e vai ser vosso professor no próximo ano”. Estava-se em plena crise das
Torres das Amoreiras e deste uma aula explicando porque é que não nos sentimos
agredidos por uma catedral gótica, mas sentimos o peso de arranha-céus
repetitivos e sem pontos de referência. A explicação foi feita desenhando no
quadro, com giz. O mesmo método que usarias sempre, nas aulas, para explicar o
funcionamento dos zigurates, a modulação das muralhas ou a topografia da Lisboa
Islâmica. Hoje, serias defenestrado se tal fizesses…
Dois dias antes do natal passado, e com um copo de
moscatel à frente, confessei-te, no meio da nossa longa conversa, que tenho
saudades de escrever livros e de preparar exposições contigo. Aqui me
contradigo e cedo à nostalgia. O frenesim dos anos 1991/2001 não o repetirei.
Não o repetiremos. Em final de 2001, com a inauguração do Museu Islâmico,
fechou-se um capítulo. Isso era mais que claro. Ao longo dos anos, tornou-se
também evidente que o modelo de trabalho que desenvolvíamos tinha, ele próprio,
um tempo e um limite. Aí nunca concordámos, como bem sabes. Sou defensor de
soluções mais formais, mais institucionais e muito mais conservadoras. De
ligações fortes a Universidades (o acordo com Coimbra foi tirado a ferros…), a
bancos, empresas e fundações. Num sistema de “matching funds”, e não de apenas
de subsídios ou de donativos. Mas, como sempre disse e aqui reafirmo, este
projeto é teu. A condução da máquina cabe-te. Como sempre sucedeu.
Como no futebol, a grande aprendizagem colhida em
Mértola foi a de saber ver as jogadas pelo ângulo inverso. A de perceber que as
pequenas coisas são as mais importantes, e que as pessoas “pouco importantes”
são as decisivas. Por isso, os anos trabalhando contigo foram mais importantes
que os graus académicos. E não há MBA, pós-graduações em políticas públicas,
doutoramentos etc. que valham a outra formação por que aí passei. E que foi a
humana e a política, antes de mais.
Quando, há meses, decidi tomar outro rumo, várias
pessoas me perguntaram “mas houve chatices com o Cláudio?”, “zangaram-se?” etc.
Nada disso. Nem por sombras. Dificilmente tal acontecerá. E nunca, em caso
algum, deixarei de mostrar o meu reconhecimento pelos anos extraordinários que
correram entre agosto de 1991 e fevereiro de 2006. Quinze anos de exposições,
de livros, de correrias, de escavações, de Portugal
Islâmico, de Marrocos-Portugal,
de Memórias Árabo-Islâmicas, de Terras da Moura Encantada etc. De uma
aprendizagem intensa e de todas as oportunidades que me foste dando e que fui
aproveitando. Claro que ainda fui voltando, depois de 2006, mas já não era a
mesma coisa. Também não queria regressar, em 2018, ao sítio onde fui feliz.
Foram dois sítios, de facto, Mértola e Moura, o que me deu o privilégio raro de
ter duas terras.
Nesses 15 anos, aprendi a desempenhar o meu papel de
ator secundário. Digo-to com convicção e sem qualquer melindre. Aproveitei a
placa giratória que o Campo foi, e ainda é. É agora muito menos que antes, como
bem sabes. Mas o mundo mudou, e nós com ele.
O projeto vai continuar? Claro que sim. Quem o duvida?
Não voltará a ser o que era? Decerto que não. Não pode, nem deve. Também não
pode, nem deve, perder a alma. Como isso vai ser feito, é coisa que cabe a quem
aí está. Pela minha parte, foi uma sorte poder ter aí estado durante tantos
anos.
A parte mais divertida de tudo isto? Ter podido
escrever e publicar, nos 40 anos do Campo, um texto como “350.400 horas mais
tarde…”. Sem bibliografia nem um raio de uma citação. E borrifar-me para o que
os “cientistas” pensem ou deixem de pensar acerca disso. Essa descontração foi
sendo aprendida contigo, fica a saber.
Não estou aí hoje, mas espero estar em 2020. Por isso, aqui da Madragoa, te saúdo e brindo, com um copo de vinho tinto, como deve ser e manda a lei, “à tua e à nossa”.
Bravo! Muito bem... (se me permite) Forte abraço ao Claúdio, com muita admiração e respeito.
ResponderEliminarBravo!
ResponderEliminarMas a maior novidade dos 80 anos do Cláudio é que não parecem ser.A cultura ao poder!
ResponderEliminarJorge Custódio