No meio de um interminável projeto de investigação entrei, há dias, no Museu Militar de Elvas. Toda aquela parte da fortaleza está organizada com rigor e disciplina castrenses. Os militares que nos recebem são de uma disponibilidade total. No meio do calor da tarde, e ante o meu atarantamento, um deles sugeriu “não se esqueça de visitar o setor das viaturas, fica na parte de trás”.
O forte é imenso. Muitas vezes dei comigo a pensar – ao olhar para o esplendor de Elvas ou de Almeida, mas também para obras menos complexas como Campo Maior, Ouguela, Arronches ou Moura – “que gente extraordinária foi aquela que, em poucos anos, mudou a face dos castelos medievais? que homens eram aqueles que construíram as defesas de um País em muito pouco tempo? que alma tinham e com que convicção o fizeram?”. Não saberemos os seus nomes, mas a eles devemos quase tudo.
Era nisso mesmo que pensava ao percorrer o forte. No anonimato dos homens e na importância da preservação da memória. A dado momento, passo por um carro de combate. Um chaimite – só o nome é fantástico, por aquilo que evoca – com o nome pintado. Leio BULA. Procuro informações adicionais, mas não há rigorosamente nada. Tenho uma quase certeza “esta foi a viatura em que evacuaram Marcelo Caetano do Quartel do Carmo no dia 25 de abril de 1974”. Tomo nota da matrícula, MG-48-04. Tomado de um estranho impulso, faço uma coisa que nunca fizera. Toco a chapa do blindado, enquanto penso “estou a tocar a História e estou a tocar o dia mais importante do século XX de Portugal”. Ao chegar a casa, vou rever a reportagem de Alfredo Cunha. Irrepetível e genial. E já ele pode fotografar milhares de coisas, que nunca voltará aquele dia único, “o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio”, de que nos falou Sophia de Mello Breyner Andresen. Lá estão os blindados e lá está o chaimite.
No calor da tarde de Elvas ficara uma viatura. O nome (Bula) é de um sítio a norte de Bissau. Mas nada, no museu, nos explica o que é Bula e onde fica, que carro é aquele e que importância teve, num dia decisivo para todos nós. Sinto um estranho embaraço. Como historiador, sempre me causou estranheza a forma como, em Portugal, lidamos com o passado. Renegamos a memória, ocultamos os factos e temos vergonha dos nossos libertadores. Aquela viatura – uma caixa de metal com um nome e uma matrícula – é muito mais que um carro com rodas. Nela teve lugar um momento decisivo do século XX português. Devia ser objeto de pedagogia e não de esquecimento.
Nestas alturas, lembro-me sempre de uma entrevista que fiz a António Borges Coelho, há já muitos anos. A dada altura, disse algo como “a memória do passado recente é ocultada, porque muitos dos que estão no poder são filhos e netos dos de outrora; são os mesmos e protegem-se”. Essa frase não mais me saiu da cabeça. E justifica, muito provavelmente, a envergonhada situação em que está um certo chaimite. O tal em que Marcelo Caetano viu, pela última vez, Lisboa e que tem a matrícula MG-48-04.
Crónica publicada no "Diário do Alentejo" (25.9.2020)
Muito bom... este testemunho.
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