quarta-feira, 23 de setembro de 2020

UM ABEL FERRARA LUSITANO

Estou à espera que a nuvem passe, empoleirado num banco de pedra. Ao meu lado, um carro de transporte de valores faz uma lenta, e ilegal, marcha-atrás. Um clio velhíssimo tem de parar, por causa da manobra. Detrás do meu banco sai disparada uma jovem de ar desleixado, que resolve cumprimentar a dona do clio dando um pontapé no carro. Erra no local e exagera na força. O farolim do clio voa, em pedaços. A nuvem passou, mas com tanto carro tenho de esperar mais um pouco. Os ânimos exaltam-se. A jovem "oh, c******, lá f*** a merda do farolim". A dona do carro cruza os braços, gelada. Depois diz "agora pagas essa merda". Depois, tira a cabeça de fora e interpela-me "já que está fazendo fotografias, bem pode fotografar isto". Faço que sim, por fazer. A dona do clio vai estacionar o chaço. A jovem continua um chorrilho de palavrões, f***-se, c******, p*** que pariu, enquanto se senta numa esplanada e telefona, num tom que se deve ouvir em Figueiró dos Vinhos, a um mecânico "olha lá, quanto é que custa uma merda de um farolim?". A dona do clio chega entretanto. Ficam as duas na mesma mesa, rindo loucamente. Mas loucamente mesmo, não é loucamente assim-assim. Por prudência, abrevio a sessão, meto-me no carro e zarpo para a Lousã. Telefono a uma velha amiga "quando isto acabar, escrevo um livro". Ao longo de oito semanas, vinca-se-me a velha convicção que há um Portugal paralelo e muito pouco falado ou conhecido.


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