quinta-feira, 31 de março de 2016

A DERRADEIRA OVAÇÃO A MARCELO CAETANO

No dia 31 de março de 1974 houve Sporting-Benfica. Marcelo Caetano foi assistir ao jogo, acompanhado por Veiga Simão, que era o Ministro da Educação. Vivia-se o rescaldo da intentona de 16 de março. Marcelo foi ovacionado pela multidão. De forma genuína e vibrante. Nota-se, na fotografia, o ar feliz de ambos. Tenho, ao longo dos anos, olhado inúmeras vezes para esta fotografia. O caráter transitório do Poder tem destas coisas e a vontade das massas tem desígnios insondáveis.

Pergunto-me quantos dos que o aplaudiram passaram, três semanas e meia mais tarde, a vaiá-lo num certo dia 25 de abril...

quarta-feira, 30 de março de 2016

RED HOT RIDING HOOD

Como alguém já notou, tentem lá fazer um filme destes nos nossos dias... No meio do "politicamente correto" isto teria sido banido de imediato. Um capuchinho vermelho a trabalhar num cabaret? Uma avó assim para o tarado? Um lobo mau playboy? Havia de ser...

Tudo isto se deve ao génio de Tex Avery (1908-1980), que realizou este Red hot riding hood em 1943. É um dos muitos filmes que trouxe de França, entre 2000 e 2004, ao Manuel e à Luísa. Fraca compensação para tão prolongadas ausências. Mas os moços ficaram fãs das loucuras de Tex Avery. Nenhum é tão droopyano como eu, mas as coisas são assim mesmo. Nesta versão quente do capuchinho vermelho estão lá todos os recursos de slapstick que celebrizaram o grande cineasta americano.


Versão sem legendas, mas o essencial dispensa palavras, nesta escolha cinéfila da semana:


TURISMO PASCAL

Visitantes nos dias da Páscoa, registados no Posto de Turismo, em Moura:

168 - Sexta
202 - Sábado
167 - Domingo

Ou seja, um total de 537 em três dias. Contra factos não há argumentos. Ninguém visitaria esta cidade se não houvesse nada para ver. E há. Não haveria, bem entendido, se tivéssemos seguido conselhos errados. Ainda hei-de ver alguns mais descarados a reclamarem a paternidade dos projetos de reabilitação...

terça-feira, 29 de março de 2016

NA CRISTINA

Continua a ser um dos locais preferidos dos mourenses para fazer a Segunda-Feira de Páscoa. Há uns anos, a estrada do Pedrogão chegou a ser alternativa, mas a tradição (e a proximidade à cidade) fez com que a tradição fosse retomada. O sítio não é exatamente o mesmo. Hoje, o dia é passado a nordeste da antiga entulharia (letra A). Nos meus tempos de juventude, ia-se para o lado direito da estrada, a seguir à linha de água (letra B). O espírito é o mesmo, salvo que hoje há muito mais automóveis e quase se perdeu o hábito de ir a pé para o campo.

Por resolver (para mim, pelo menos), está o topónimo pelo qual o sítio é conhecido. "Cristina" parece pouco lógico e, a menos que remeta para o apelido de um antigo proprietário (vejam-se os casos, no concelho de Moura, de Cid Almeida ou do Castelo das Guerras) ou para o nome própria de uma antiga dona, fica a possibilidade de uma corruptela de qualquer outra designação.

Recorde-se, em todo o caso, que todo aquele espaço se deverá sobrepor a uma antiga villa romana, cujos vestígios são detetáveis numa vasta extensão. Conserva-se ainda o nome de S. Cristovão, orago muito antigo e quase sempre ligado a este tipo de ocupações. A arqueologia se encarregará, um dia, de confirmar estas suposições. 

segunda-feira, 28 de março de 2016

CUBA: DI DIMÓCRACI ANDE DI IUMAN RAITES

A visita de Obama já lá vai e causou um par de emoções precoces. O país da dimócraci e dos iuman raites (leia-se IU-ESSE-EI) tem um desempenho miserável no acesso ao sistema de saúde (ou pagas ou morres) e a um sistema de ensino justo e igualitário (ou tens dinheiro ou vais para o fundo da escala). Tem um número espantoso de gente a viver abaixo do limiar da pobreza. Baseia a sua existência imperial numa exploração que não conhece limites territoriais ou éticos. E permite-se explicar ao Universo o que são a Democracia e os Direitos Humanos.

Do ponto de vista político, esta visita só faria sentido para levantar um embargo criminoso que dura há 55 anos. E que é a maior vitória moral do povo cubano.

domingo, 27 de março de 2016

LUZES E SOMBRAS EM SAFARA

Da colorida luz no interior da igreja à quase total escuridão da noite. As palavras de solidão de Robert Frost, poeta com presença regular aqui no blogue, perseguiram-me, ao longo do dia e da noite.

Gosto das luzes coloridas, fazem-me lembrar o acordar preguiçoso na Dar Youssef, algures no sul de Marrocos. Gosto daquele silêncio escuro da noite safarense. Não recordo outra Sexta-Feira da Paixão com a intensidade desta.

O dia começou cedo e acabou tarde. Sempre em torno de Safara e da estrada para Safara.



LONELINESS
(Her Word)

One ought not to have to care
        So much as you and I
Care when the birds come round the house
        To seem to say good-bye;

Or care so much when they come back
        With whatever it is they sing;
The truth being we are as much
        Too glad for the one thing

As we are too sad for the other here––
        With birds that fill their breasts
But with each other and themselves
        And their built or driven nests.

sábado, 26 de março de 2016

KEITH HARING EM SERPA

Quinta à tarde foi dia de ir a Serpa, à inauguração do novo museu arqueológico. E de dar um abraço de parabéns ao meu colega e camarada Tomé Pires e aos colegas da vereação. É uma intervenção que vem dar nova vida à alcáçova, dez anos depois do espaço ter sido encerrado ao público. Uma intervenção interessante e que enquadra bem a história do concelho. Foi uma tarde de surpresas. Permitiu-me conhecer pessoalmente o arq. Alberto de Souza Oliveira (cuja obra admiro - v. aqui). Soube, depois de uma breve conversa com ele, que elaborou um nunca concretizado projeto para Moura, nos anos 70. Prometeu que me enviaria alguns desenhos, para uma exposição que o meu amigo João Catarrunas tem em preparação. Deparei, em pleno museu, com mais uma peça, que julgava desaparecida, referente à Ecclesia Santa Maria Lacantensia, o sítio religioso que explica o nome de Moura na Alta Idade Média (v. aqui). Fui celebrar condigna e intimamente o facto, noite dentro, Salúquia fora, com dois amigos de longa data.

Punch-line: no pátio da alcáçova, um cimácio da Antiguidade Tardia apresentava caprichosos, e algo toscos, desenhos vegetalistas, sugerindo folhas. Na realidade, a primeira evocação foi a de Keith Haring, o que não é uma coisa inédita, uma vez que já antes o "referenciara" na Amareleja (v. aqui)


quinta-feira, 24 de março de 2016

HABITAR PORTUGAL: MOURA

A exposição está patente no Porto, até ao próximo dia 25 de abril. Daqui a um mês, portanto.

Foram selecionadas 80 obras, de acordo com uma distribuição geográfica. Do sul, são 20. Dessas 20, duas são em Moura. Nada mal. Ainda para mais, são ambas de iniciativa municipal. Juntemos a isto o Prémio do IHRU para a Mouraria. Estamos mais à frente que outros? O esforço de requalificação (não só da cidade) começa a dar frutos. Disso tenho a certeza.


Obras selecionadas?


EDIFÍCIO SEDE DA LÓGICA Moura, 2013 João Santa-Rita
 



MUSEU MUNICIPAL DE ARQUEOLOGIA DE MOURA / Moura, 2014 João Maria Trindade - Ventura Trindade, Arquitectos


"Estamos" presentes noutras obras, noutros concelhos. Arquitetos que têm trabalhado em Moura viram outras obras suas selecionadas.


Victor Mestre e Sofia Aleixo (autores da reabilitação da igreja do Espírito Santo e do Pavilhão das Cancelinhas)

CONVENTO DOS CAPUCHOS / Serra Arrábida, 2012  – VMSA arquitectos 

Tiago Mota Saraiva (autor do projetos do novo Cemitério de Moura e da recuperação da Torre do Relógio, em Amareleja):

ESTAÇÃO DE CANOAGEM DE ALVEGA / Abrantes, 2014

Site de Habitar Portugal: http://www.habitarportugal.org


DIAS DE GUERRA


O livrinho vinha com outro, sobre espionagem em tempos de guerra. As fotografias de grandes repórteres lá estão. Foi um dos cliques (literais) que me levou ao amor pela fotografia. Folheei-o vezes sem conta. Fui buscá-lo à estante, agora que a guerra se estende. Hoje já não há civis. Há apenas alvos. Sem mais. Lembramo-nos deles quando há ataques sem sentido em Bruxelas ou em Paris. Recordemo-nos, contudo, que esta carnificina ocorre, todos os dias e há muitos anos, em Bagdad, em Kerbala ou em Kabul. Mas isso é lá longe...

Robert Capa - Reportagem do Dia D

quarta-feira, 23 de março de 2016

JÚBILO

Fiquei, ontem, imensamente feliz ao saber que a minha amiga Cristiana Bastos vai receber uma importante bolsa de apoio para um estudo sobre A COR DO TRABALHO: AS VIDAS RACIALIZADAS DOS MIGRANTES. Conheço a Cristiana há mais de 30 anos anos (quase me custa escrever estes números...) e é, com toda a certeza, uma das pessoas mais brilhantes que conheço. E que alia, coisa que nem sempre acontece, a qualidade intelectual a uma desarmante simpatia e a um raro espírito combativo.

Transcrevo a nota que o ICS publicou no facebook:

CRISTIANA BASTOS, investigadora principal do ICS-ULisboa, recebe 2,2 milhões de euros (Advanced Grant 2015) do EUROPEAN RESEARCH COUNCIL para estudo sobre A COR DO TRABALHO: AS VIDAS RACIALIZADAS DOS MIGRANTES. É a terceira vez que o ICS-ULisboa recebe um financiamento desta instituição europeia.
Este projeto é sobre racismo, racializações, fronteiras e migrações, abordando um conjunto de deslocamentos até hoje pouco documentado porém crucial na constituição das sociedades contemporâneas: os fluxos intercontinentais de trabalhadores na pós-abolição da escravatura e as dinâmicas de inclusão/tensão/competição que se estabeleceram localmente, acompanhadas de formações conceptuais por vezes apresentadas como ciência racial. Vamos documentar vários casos articulando passado e presente, combinando antropologia e história, etnografia e arquivo; entre eles contam-se as grandes deslocações de portugueses das ilhas para as plantações de açúcar no império britânico, sobretudo na Guiana, desde a década de 1830, ou, mais tarde, para a revolução industrial da Nova Inglaterra. De um ponto de vista português, será interessante pensar a expansão de um modo inteiramente diferente daquele que até hoje impera, substituindo a narrativa das caravelas e descobertas pela do trabalho, dificuldades e conquistas sociais. Mas o objetivo do projeto é mais amplo e, como assinalaram os avaliadores, que unanimemente apontaram a sua originalidade e ambição, abre fronteiras no estado atual do conhecimento, articulando diferentes campos científicos, metodologias, pontos de observação e metas teóricas.
Cristiana Bastos é antropóloga e integra o Instituto de Ciências Sociais desde 1990, onde é coordenadora do grupo de investigação Identidades, Culturas, Vulnerabilidades. Colaborou e colabora com diversos programas de pós-graduação na Universidade de Lisboa, ISCTE, Coimbra, Brown, University of Massachusetts-Dartmouth, Unicamp, UERJ, UFRJ. Formou-se na FCSH, foi orientanda de Vitorino Magalhães Godinho, e doutorou-se na City University of New York. Os seus interesses situam-se na interseção da antropologia, história e estudos sociais da ciência, materializando-se em linhas de pesquisa sobre dinâmicas da população, mobilidade transnacional, biopolítica colonial, medicina e império, história social da saúde e do bem-estar. Trabalhou sobre o Algarve interior, Brasil urbano, Goa colonial, e, presentemente, estuda dinâmicas de etnicização e racialização em economias de plantação e de indústria nas Américas. 

A Cristiana, discretamente, não referiu o facto, tendo optado pela expressão "In heaven" e remetido para Ella Fitzgerald. Sempre é melhor que os Frankie Goes To Hollywood, que ouvíamos em Mértola e em Noudar, em 1983/84...

À tua, Cristiana!


terça-feira, 22 de março de 2016

UMA CIDADE E O SEU MUSEU: 17/20 - DAMASCO

Foram dias demasiado fortes. Já lá vão quase 13 anos. Éramos dois portugueses à descoberta da Síria. Duas semanas em passo rápido, com muito para ver e com muito para sentir. A primeira impressão de Damasco foi apenas aceitável (não gosto de cidades planas...) e só começou a mudar quando entrei na cidade velha. Quando passei pelo propileu e quando entrei na mesquita omíada, experiência transcendente e que tem muito poucos paralelos na minha vida. Da Síria conservo a grata experiência de ter encontrado, depois de uma longa caminhada, o meu amigo Haytham Hasan em plena escavação de Masyaf.

Lembro-me, no Museu Nacional de Damasco, da escrita cuneiforme e das vestígios de Mari. Mas a imagem forte é a da fachada de Qasr al-Hayr al-Gharbi, um monumento do século VIII. Só me lembrava daquele filme de René Clair, no qual um castelo é desmantelado e remontado na Florida. O fantasma vai atrás... Bom, aqui é menos complicado. Há um certo tom cinematográfico na montagem. Mas é toda a Síria que cabe naquela fachada.

De Damasco, recordo, com toda a clareza, o pátio da mesquita (onde encontrei um jovem iraniano que lera Saramago em farsi que me dizia que "aquilo" não era nada comparado com o País dele), Bab Charqi, o bairro cristão, as pedras dos templos antigos. E a instalação de Eva Lootz, no Khan Assad Pasha. E Paloma Canivet, esvoaçando na cidade antiga.

segunda-feira, 21 de março de 2016

A CAUCASIANA, A LOURA E A BICICLETA

A imprensa não nos dá descanso. Fica a pergunta: quem escreverá tão brilhantes prosas? Imagino que os mesmos "experimentados" repórteres que debitam as mais inenarráveis baboseiras à frente das câmaras televisivas. Desde que tenham um palminho de cara...

O DN consegue transformar uma notícia quase trágica numa peça burlesca:

Há uma agressora caucasiana (branca, porra!, diz-se branca, que isso dos caucasianos é noutro mundo e aqui poucos sabem o que isso é), que tem cabelo castanho. Há outra, que é loura (caucasiana ou afro-americana com peruca, eis a dúvida), e há um que tem uma bicicleta. Tendo em conta o estilo da notícia, parte-se do princípio que usava a bicicleta à guisa de cabeleira...

Parece anedota. Juro que não é!


TEMPOS MODERNOS

Os dias que correm evocam-me esta sequência de "Tempos modernos", uma obra com exatamente 80 anos. A política portuguesa adquire contornos chaplinescos. Há quem faça patinagem de olhos vendados, há quem tenha a atração do abismo e há quem, como certos personagens dos filmes de Chaplin, não tenha pejo em colocar no terreno o mais despudorado arrivismo. À medida que este ano avançar, isso tornar-se-á mais claro. "Tempos Modernos" é o meu filme destes dias.

domingo, 20 de março de 2016

CABO VERDE??? ONDE FICA CABO VERDE?

É absolutamente espantoso, mas até há momentos nenhum (!) dos principais órgãos de informação portugueses dava notícias sobre as eleições legislativas em Cabo Verde. É um País importante para Portugal, por muitas razões, pelo que tanta displicência só aumenta o meu espanto. Campeiam nas elites informativas portuguesas a sobranceria, o paternalismo e a ignorância. É pena, mas é assim...

Já enviei felicitações a amigos que foram eleitos, por sinal por partidos diferentes (MPD e PAICV).

Resultados completos em http://www.eleicoes.gov.cv/legislativas/index.html



Tarrafal e Ribeira Grande de Santiago, duas cidades muito especiais para o autor do blogue.

CASA GRANDE E SANZALA


O texto, de grande pertinência e qualidade, é de António Teodoro (ex-coordenador da FENPROF, lembram-se e intitula-se Brasil: quo vadis?. Foi publicado na passada sexta-feira no blogue Jardim das Delícias. Transcrevo-o, como se costumava dizer, com a devida vénia:

Estou neste momento a viver em S. Paulo, o que me permite acompanhar, hora a hora, a crise brasileira, tanto por intermédio da mídia (como dizem e escrevem os nossos amigos brasileiros) como, sobretudo, pelo contacto com as pessoas, professores e estudantes na Universidade, e cidadãos de classe média alta num dos bairros mais seletos de S. Paulo. E acompanho, pelas redes sociais e o noticiário em Portugal, os ecos desta crise brasileira que, se não fosse demasiado grave e mexesse com as vidas de milhões de pessoas, podia ser considerada uma tragicomédia.
Permitam-me que dê a minha interpretação sobre o que está a suceder no Brasil e dos possíveis desenvolvimentos da situação extremamente complexa que se vive. Uma situação que, segundo descrevem os meus amigos mais velhos, é muito parecida com a dos anos que antecederam o golpe de Estado de 1964, com a diferença de que, agora, enquanto os militares estão silenciosos e com uma (aparente) postura institucional respeitadora da Constituição, são os juízes (ou uma parte do poder judicial) que se assumem como os “justiceiros” que têm a missão de regenerar o País.
Os problemas existentes decorrem diretamente de três situações próximas e já bem definidas: (i) a derrota do candidato das elites nas últimas eleições presidenciais (que, num regime presidencialista como o brasileiro, são também de Governo), a quarta consecutiva, por uma pequena margem e com uma divisão de votos muito marcada em termos de classe e de região; (ii) as consequências da Operação Lava Jato que, de uma operação judicial (e policial) de combate à corrupção, envolvendo e mostrando uma poderosa teia de financiamentos partidários e enriquecimento ilícito de agentes públicos (políticos, empresários e gestores), evoluiu para um golpe de Estado a partir de parte do sistema judicial (e policial), em conluio com a mídia conservadora (com destaque para a rede Globo e as revistas Veja e Isto É); e, (iii) uma conjugação da crise económica com uma crise de governabilidade, onde a primeira piorou a vida dos brasileiros e a segunda colocou o sistema político à beira da implosão, com alguns dos grandes empresários nacionais presos (e as suas empresas em grandes dificuldades, gerando desemprego em massa) e um número elevado de deputados e senadores indiciados por crimes de corrupção, entre os quais os presidentes das duas câmaras do poder legislativo.
Num país com as desigualdades do Brasil, a metáfora da Casa Grande e da Sanzala (título do famoso livro do sociólogo Gilberto Freyre) ainda é a que melhor se adequa à descrição do tecido social brasileiro. As gravuras de Debret do século XIX, retratando as famílias do Rio de Janeiro passeando com os seus escravos, e as fotos daquela outra família do diretor financeiro de um grande clube de futebol, onde ele, a mulher e o caniche seguem à frente, acompanhados pela babá negra, fardada de branco, que leva os dois filhos do casal, a caminho de uma manifestação contra a Dilma e pelo impeachment, representam uma mesma realidade que mais de 150 anos ainda não conseguiu apagar. Para quem julga que estou a exagerar e essa foto representa um caso isolado, aconselho a, quando visitar S. Paulo, passear num shopping de luxo ou no bairro onde vivo.
A Casa Grande não se conformou com a derrota das últimas eleições presidenciais e temeu ainda mais a possibilidade do ex-Presidente Lula se voltar a candidatar (e poder ganhar de novo). Para que isso não pudesse acontecer, a grande mídia (mantenho o registo na escrita do português brasileiro) desenvolveu uma sistemática e persistente destruição do capital simbólico do antigo metalúrgico sindicalista (que saiu do Governo com uma aprovação superior a 80%, um valor sem precedentes na política brasileira), aproveitando muitos “rabos de palha” que, ele e sua família, e sobretudo a cúpula do PT, foram deixando e que revelam uma deterioração dos valores republicanos que deviam nortear todos aqueles que se batem por projetos de transformação social. Mas essa destruição do capital simbólico não foi suficiente. As últimas sondagens, no auge da revelação dos escândalos do “triplex do Guarujá” ou do “sítio de Atibaia” (que Lula jura que não são sua propriedade), mostram que Lula tem condições de disputar e poder ganhar de novo a Presidência da República.
Para isso, a Casa Grande, que, politicamente, é representada por uma complexa aliança de interesses capitaneados por um partido herdeiro da Arena (o partido da ditadura militar, hoje batizado de Democratas) e do PSDB, que tem em Fernando Henrique Cardoso o seu principal símbolo (há pouco mais de um ano vi-o, na Casa de Portugal, elogiar as grandes capacidades de “estadista” e de governante lúcido, imagine-se, a Pedro Passos Coelho) e putativos candidatos como o playboy Aécio Neves, ou o militante da Opus Dei Geraldo Alckmin, decidiu lançar uma ofensiva em várias frentes:
1. Criminalizar Lula e, se necessário, prendê-lo para impedir o seu regresso à vida política ativa.

2. Concretizar o impeachment da Presidente Dilma, derrubando o seu Governo.
3. Mudar algumas opções de política económica que permita ao capital financeiro ocupar o espaço deixado pelas empresas cujos dirigentes estão presos e, sobretudo, não ter o limite do “petróleo é nosso” (vigente desde o final da II Guerra), abrindo a exploração das imensas riquezas do pré-sal às grandes multinacionais do petróleo.
4. Destruir o PT (e o seu aliado próximo, o PCdoB) e impedir que, nos tempos mais próximos, a esquerda tenha influência eleitoral e possa dirigir um país com a dimensão do Brasil.

É neste contexto que tem de ser entendida a decisão de nomear Lula Ministro da Casa Civil, ou seja, uma espécie de Primeiro Ministro nos regimes semipresidenciais, responsável pela articulação política e pela implementação do PAC (Programa de Aceleração e Crescimento). Essa entrada de Lula no Governo Dilma responde a duas necessidades imperiosas: (i) evitar a prisão preventiva de Lula, transferindo a competência da investigação e julgamento do “justiceiro” e mediático juiz de 1ª instância de Curitiba, Sérgio Moro, titular do processo da Lava Jato, para o Supremo Tribunal Federal, o único com competência para investigar e julgar titulares de órgãos de soberania; (ii) dar uma direção política à ação do Governo e reunir apoios para impedir a concretização do impeachment de Dilma.
Num depoimento publicado no Diário de Notícias de 17.03.2016, o Embaixador Seixas da Costa, que teve uma notável atuação enquanto responsável pela Embaixada de Portugal no Brasil há uns anos atrás, durante o mandato de Lula, chamou a essa entrada de Lula no Governo a “bala de prata”. Não concordo com o essencial do seu depoimento, embora concorde que esse gesto foi uma decisão muito arriscada, utilizada por Lula e Dilma para tentarem sair de um cerco extremamente apertado, onde um juiz de 1ª instância tem poderes para realizar escutas telefónicas (“grampear”) à Presidente da República, ou divulgar (“vazar”) para a comunicação social essas gravações no momento em que deixou de ter competência jurídica para acompanhar o processo; ou, onde um outro juiz de 1ª instância que, no Twiter e Facebook, se tinha vangloriado da sua participação nas manifestações anti-Dilma (postando inclusive no Facebook as inevitáveis selfies) se sente à vontade para impugnar um ato da Presidente, neste caso a nomeação de um Ministro que, legalmente, não está sequer indiciado de qualquer crime.
O uso da “bala de prata” é talvez o último recurso ao dispor de Lula e Dilma. Se perderem, caem os dois, o PT (e o conjunto da esquerda entrará em grande convulsão) e o Brasil tornar-se-á o eldorado de um neoliberalismo serôdio próprio das elites subalternas. Aqueles que acham que isto é discurso ideológico vejam qual a política que Estados que têm governadores do PSDB estão a tentar implementar (embora sem grande sucesso até agora, diga-se, devido à forte oposição de estudantes, professores e sociedade civil organizada): a entrega das escolas públicas a empresas privadas, um arremedo das charters schools, bandeira dos governos Bush pai e Bush filho nos EUA.
Os próximos dias serão decisivos. A decisão está também nas mãos daqueles que vivem na Sanzala. Até agora, quem saiu à rua e se pronuncia com os imensos meios que têm ao seu dispor, foram os que vivem na Casa Grande. A Sanzala tem estado na defensiva e silenciosa, por falta de projeto mobilizador e por desmoralização. Se Lula conseguir a mobilização da Sanzala, estabelecer pontes e alianças para alguns sectores da Casa Grande que ainda estão reticentes com o caminho que lhes é proposto, o Brasil pode retomar o caminho de transformações sociais que tiraram da miséria mais de 40 milhões de pessoas num espaço curto de uma década. Mas isso, implicará também, depois de um primeiro embate e da derrota do golpe de Estado em curso, uma renovação moral e um novo projeto político. Se Lula, o PT e as esquerdas não o fizer, a Sanzala não lhes perdoará, abandonando-os à sua sorte.

COM OS MOURENSES, NA CASA DO ALENTEJO

Nunca fui aluno da Escola Industrial e Comercial de Moura, não tinha idade para isso, nem da Secundária (estive exilado entre outubro de 1973 e setembro de 1986). Mas os organizadores da jornada de ontem tiveram a imensa simpatia de me convidarem a estar na Casa do Alentejo. O pretexto era um encontro de antigos alunos da Escola Industrial. Isso de eu ser presidente da câmara foi coisa secundária para a maioria, que me conhece de toda a vida. Muitos queriam certificar-se, e porque os anos passaram, "és o filho da menina Júlia, não és?". A minha mãe foi funcionária da escola, onde entrou como contínua, entre 1958 e 1972. Aos 78 anos continua a ter o mesmo tratamento entre a rapaziada daquele tempo.

Eu próprio não escapei a um momento que muito me divertiu. Uma senhora da Amareleja, que eu não conhecia, ficou ao meu lado, no almoço. Comentário "já me tinham dito que o presidente da câmara era um rapaz novo, mas eu não o conhecia!". Por momentos, pensei que a senhora estivesse a falar de outra pessoa...

Uma tarde em cheio, com a presença forte do Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense.


sábado, 19 de março de 2016

DUAS GERAÇÕES E MEIA

Ía eu dizer "três gerações de militantes do PCP" quando o Lopes Pereira me corrigiu: na realidade, são duas gerações e meia. Da esquerda para a direita: Carlos Lopes Pereira (n. 1951), Miguel Urbano Rodrigues (n. 1925) e o autor do blogue (n. 1963). Almoço ontem, em Moura. A fotografia foi feita no pátio da igreja de S. Pedro. O Miguel é cá da terra e teve a gentileza de consentir que eu o entrevistasse para o "Diário do Alentejo", em 1997. A conversa de ontem andou por muitos temas e muitos sítios. Como é hábito, de há muitos anos a esta parte. O Miguel é uma das pessoas mais interessantes e cultas que conheço (e conheço muita gente). O Carlos é um dos mais antigos, sólidos e inteligentes amigos.

Eis um testemunho fotográfico de uma "coisa" chamada Amizade.

sexta-feira, 18 de março de 2016

PÁTIO DOS ROLINS - REABILITAÇÃO EM CURSO

Aproveitei a vinda a Moura do meu colega e amigo Nélson Brito (Presidente da Câmara Municipal de Aljustrel) para mais uma visita ao Pátio dos Rolins. O imóvel, que data do século XVI, passa por obras de reabilitação, no montante de 235.000 euros. A partir do próximo verão, o Pátio dos Rolins terá nova vida: ao que já existia e se manterá (Espaço Internet), juntar-se-ão quatro unidades habitacionais. Dar vida ao centro histórico é um tópico fundamental e o cerne das intervenções que aqui se têm vindo a promover. Casas como esta fizeram-se para nelas morar gente. Como tal, nessa função serão usadas. A sugestão de equipamentos ou de instalação de serviços camarários foi por nós, pura e simplesmente, ignorada.

Um nutrido grupo de operários dava, esta tarde, forma à intervenção. A atividade era intensa e a aplicação bem visível.

O projeto de reabilitação do edifício é da autoria de Patrícia Novo, arquiteta da CMM.

quinta-feira, 17 de março de 2016

RIO GRANDE



Fronteira do Rio Grande

Fervura de areias,
Cardos.
Cardos.
Magueyes.
Ped ras que se levantam e rompem o horizonte.
Chão de cintilações.
Silêncios vigiados,
homens por trás de todos os silêncios...
Campainhas de canras.
Fogo de sarapes.
México!


O poema é de Ronald de Carvalho (1893-1935). O rio da fotografia não é muito grande. Ou é. Depende da perspetiva. Espero, daqui a algum tempo, cruzar o Rio Grande. O outro. Este já o conheço.

quarta-feira, 16 de março de 2016

SÉCULO DENTRO

A reunião de ontem do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável decorreu num ambiente diferente. Por razões de ordem logística, o encontro teve lugar na antiga secretaria do jornal "O Século". Já várias vezes tinha passado pelo exterior, mas nunca entrara.

É um sítio verdadeiramente excepcional, todo ele orgulho burguês do início do século XX. Madeiras, vidros e metais de qualidade e bom gosto. Tetos bem desenhados, capitéis coríntios e muita luz. À entrada, do lado esquerdo, lê-se, num dos guichets, Illustração Portugueza.

Olha-se para cima e vem-nos à memória o cenário de Citizen Kane. Talvez se esteja condicionado por o filme ter um jornal como cenário, mas é assim.

"O Século" desapareceu em 1977, no meio de um processo triste. Fica a memória das coisas, no silêncio de um sítio onde tanta gente viveu. Evoquemos o sítio, e a poesia de Cecília Meireles.



JORNAL, LONGE

Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?

Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.

Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.

De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.

Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
"Os jornais servem para fazer embrulhos".

E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.



terça-feira, 15 de março de 2016

A PROPÓSITO DO ROMANTISMO E DE ADÍLIA LOPES

A propósito de estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas.



















Montauk,Montauk, nuit sur la mer, fotografia de Barbara Luisi


O trabalho de Barbara Luisi faz-me lembrar
uma fotografia de Jean-Baptiste Gustave Le Gray
de meados do século XIX. Não sei bem porquê,
mas ao ver este Montauk, nuit sur la mer, lembro-me
de Murnau e "ouço" a abertura de "Lohengrin",
de Richard Wagner. Ultimamente, apaixonei-me
por Wagner. O que quer dizer que estou a envelhecer...

E se a fotografia de Barbara Luisi é profundamente
alemã (não se trata de um acaso), a poesia de
Adília Lopes é bem lusitana. E evoca, ao de leve,
Cecília Meireles.

segunda-feira, 14 de março de 2016

AMOR MAIS QUE PERFEITO

Teve lugar, ontem à tarde, um acontecimento de extraordinária importância, na cidade de Moura. A abertura formal da Creche Amor-Perfeito e a homenagem a senhoras envolvidas na Associação Moura Salúquia ocupou o meu domingo. Numa semana são três equipamentos com origem na sociedade civil que abrem portas neste concelho. Quando muitos desistem, outros avançam.

A creche já tem mais de 30 inscritos. Ainda bem. São os seus muitos jovens utentes que assegurarão o futuro do concelho de Moura.


domingo, 13 de março de 2016

MOURA, O PS E A DEVOLUÇÃO DO IRS

De um comunicado do Partido Socialista:

"Os eleitos do Partido Socialista, fiéis aos seus compromissos, voltaram a propor que a Câmara Municipal apenas recebesse o equivalente a 3% do imposto(irs) cobrado no seu concelho, sendo os restantes 2% distribuídos pelos contribuintes aqui residentes.
A maioria Comunista na Câmara rejeitou esta proposta. E os eleitos da CDU na Assembleia Municipal de Moura votaram contra!
Hoje é noticiada a devolução de 133,591€ (cento e trinta e três mil, quinhentos e noventa e um euros) aos contribuintes do Concelho de Moura, e é importante que se diga que tal facto se deve à proposta dos eleitos do PS.
Foi com os votos da Assembleia Municipal, cuja maioria já não pertence ao Partido Comunista, que foi possível alcançar esta deliberação que permite por via desta devolução um alivio da carga fiscal para os residentes no nosso Concelho." (fim de citação)

É mesmo?
Esta devolução corresponde a um alívio da carga fiscal?
De quem e como?

Aqui vão seis exemplos:

1) Contribuinte solteiro e sem dependentes, auferindo o salário mínimo - recebe 0 (zero)
2) Casal, auferindo ambos o salário mínimo, e com um filho menor (3 anos, por ex.) - recebem 0 (zero)
3) Casal, um com um salário mensal de 1000 euros, outro com um salário mensal de 750 euros, com dois filhos (tendo um deles menos de 3 anos) - recebem de devolução do IRS 6 (seis) euros por ano.
4) Casal, um com um salário mensal de 1500 euros, outro com um salário mensal de 1000 euros, com dois filhos - recebem de devolução do IRS 52 (cinquenta e dois) euros por ano.
5) Casal, com um rendimento mensal de cada membro de 2000 euros mensais, com dois filhos - recebem de devolução 153 (cento e cinquenta e três) euros por ano.
6) Casal, um com um salário mensal de 3000 euros, outro com um salário mensal de 2500 euros, com 2 filhos - recebem de devolução do IRS 307 (trezentos e sete) euros por ano.

Ou seja:
1. Quem tem salários baixos, ou não recebe nada ou recebe verbas irrisórias;
2. Quem tem rendimentos altos, recebe valores substanciais;
3. Haja quem me explique onde está a justiça social desta medida, que favorece quem mais ganha;
4. Haja quem me desminta, quando eu digo que o alívio da carga fiscal beneficia os que mais ganham.

Dado objetivo: o Município tem, no seu orçamento, menos 133.000 euros. Que iriam beneficiar todos, e não apenas os mais ricos...

Robin dos Bosques, o anti-modelo do PS, em Moura.