O
meu bisavô José Perfeito (1887-1975) nunca foi a Beja. Tinha nascido em Aldeia
Nova de S. Bento e viveu toda a vida em Moura. Em 1973 ou 1974, o meu pai ainda
pensou levá-lo a Lisboa. Mas a saúde do avô Zé era frágil e ele optou por não o
sujeitar a uma viagem longa.
A
redação de um trabalho de investigação sobre as vias medievais tem-me levado a
recordar, muitas vezes, o avô Zé. Lembro-me muito
bem dele, sentado na sua cadeira de braços, na cozinha da Avenida da Salúquia, nº.
34. Quase sempre sorridente, quase sempre silencioso.
Do mundo, levou a imagem do sítio onde nasceu, de Moura e da
Herdade da Defesa, onde laborou toda a vida. Foi trabalhador rural até o
corpo ceder, numa idade já avançada. Um homem digno.
E tenho-me lembrado, sistematicamente, dele porque o percurso de
casa para o campo, com regresso ao fim do dia, foi o quotidiano de quase toda a
gente, até tempos recentes. Do mundo se saia conhecendo os poucos quilómetros
de paisagem que permitiam a ida e vinda num mesmo dia, antes que o sol se
escondesse. Viajar? Viajavam os militares, os mercenários, os comerciantes, os
aventureiros e, bem entendido, os aristocratas. Uma das minhas bisavós, que
trabalhou nos campos do Montijo, contava que tinha visto as luzes de Lisboa, lá
ao longe. Essa dúzia de quilómetros que a separava da Civilização nunca foi
vencida.
Ao longo de centenas de anos, assim foi. A realidade era imutável,
o tempo quase não se movia. Lemos o “Itinerário de Antonino” (que talvez date
do século III) ou o “Anónimo de Ravenna” (uma descrição dos caminhos que deverá
ter sido escrita no século VIII) e estamos ante idênticas paisagens. Passamos
depois às descrições geográficas de Ibn Hawqal, do século X, e de Idrisi, do
século XII, e muito poucas coisas mudam. Havia uma estrada ao longo da costa
algarvia, outra que se dirigia daí até Alcácer do Sal, e depois para Lisboa. Havia
vias que cruzavam o
território em direção ao centro da Península. Até ao século XVIII viveu-se
nessa realidade lenta. As estradas de macadame, primeiro, os caminhos de ferro,
mais tarde, e um rápido acelerar da vida vieram mudar o mundo. Mas, mesmo
depois disso, uma vasta maioria de pessoas continuou a viver uma vida modesta,
marcada por ritmos antigos. Nascia-se, vivia-se e morria-se num sítio, sem nada
se ter sabido do que estava para lá dos cerros que determinavam o fim do mundo
conhecido.
Pela minha secretária espalham-se fichas com nomes estranhos
como Dimiana, Kanisat al-Gurab, Laqant, Ukasha, Shirush, Byza e outros assim.
São esses sítios que me ajudarão, assim o espero, a reconstituir uma malha de
caminhos. Por eles passaram gerações de homens, que na retina levaram apenas
uns poucos quilómetros de paisagem. É esse mundo mais pequeno e íntimo que me
interessa. Mesmo sabendo a impossibilidade que a escrita da História comporta e
mesmo com a plena noção que as reconstituições que ensaiamos nos devolvem
sombras, mas não a luz plena da realidade de outros tempos.
Crónica de hoje em "A Planície"