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“Ao prezente he do termo de Moura sendo antiguamente independente della”. Assim se escrevia em 1758 nas memórias paroquiais, as mesmas que davam conta da abundância dos campos e nos falavam do trigo, da cevada, do centeio e das bolotas que se podiam ver em volta da aldeia.
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Santo Aleixo é um conjunto de tribos familiares. Vivem, desde sempre, em volta de um forte ou de uma igreja. Que são o mesmo sítio. A igreja é o centro da aldeia. Que é o mesmo que dizer que é o centro do mundo.
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A aldeia organiza-se como uma acrópole, as ruas fechando-se em baixo na Rua Nova, limite antigo de Santo Aleixo. Chega-se devagar, cruzando rios e riachos, terras de montado e de silêncio. O silêncio mantém-se quando passamos o primeiro largo e as primeiras ruas. Várias ruas são percorridas e ainda não se vê ninguém nas ruas. É já demasiado tarde para quem saiu para trabalhar no campo, e ainda demasiado cedo para o resto do dia. Cruze-se a aldeia um pouco mais, até à escola, onde a musicalidade e as lengalengas do ensino de outrora deram lugar a novos métodos. São 40 meninos, menos, muito menos que em tempos idos. Em breve saberão qual o melhor pego e qual a melhor amoreira das redondezas. Começarão sem pressa a tactear o território e a tomar conta dele. Vai neles, nas brincadeiras deles, e na fala deles, o futuro da aldeia de Santo Aleixo.
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Há um secreto rumor que não lobrigamos ainda. Mercearias de desenho antigo onde cada menos gente vai – “só para as faltas”, ouve-se dizer dizer – contrapõem-se ao bulício da confeitaria, onde se fazem bolos com nomes originais – argolas de vinho, coronilhas, moreninhas de manteiga. De aromas e de alguns sons se vai fazendo esta parte da manhã.
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Entremos mais, um pouco mais, na aldeia, até uma dessas pequenas oficinas desconhecidas, onde os artefactos do dia-a-dia são ainda feitos como há muitos anos atrás. As cadeiras são, ainda são, de loendro e de zambujo, mas o buinho deu lugar à mais prosaica corda. Há um mundo antigo que desaparece, podemos senti-lo a cada passo, em cada casa e em cada conversa. Por isso um sapateiro nos diz “hoje a bota caneleira é bota de luxo, para pôr de festa”. O que antes era trabalho é hoje coisa supérflua e de ostentação.
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De onde quer que estejamos, a igreja é o centro da aldeia e, portanto, o centro do mundo. Chega-se à igreja vencendo o desnível, socalco após socalco, até se poder olhar o território em volta. Há casas num primeiro plano, depois terras, a Adiça ao longe, desaparecendo nos dias de bruma. Não diz muito uma aldeia vista de cima, com as ruas desertas e as casas fechadas. Vem, não sabemos donde, um silêncio que se sobrepõe a todos os sons. O tempo deixa de existir e é como se toda a vida se detivesse à volta dos muros das casas, imobilizando-se os ramos das árvores e deixando-se os pássaros suspensos no seu voo.
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É assim Santo Aleixo no sossego dos seus dias. Foi assim que conheci Santo Aleixo, no Verão de 1973. Nunca me lembro de ter visto quase ninguém nesses dias passados na estação dos Correios, onde fazia companhia, fraca companhia, à tia Elisa. Na verdade lembro-me de duas pessoas, da professora que me tinha inquirido no exame da 4ª classe (como se chamaria e o que será feito da senhora?) e de um rendeiro que veio mandar um vale de trinta contos. “Ena, tanto dinheiro”, pensei, mas Elisa explicou-me que era o dinheiro de todo o ano e que cultivar a terra também tinha despesa. “Ah!”, pensei outra vez, “afinal não é assim tanto”. Aos dez anos, a vida deixava de ser um eterno idílio. Descobri isso em Santo Aleixo. As outras duas memórias da aldeia são precisas e dizem respeito só à estação dos Correios: à placa outorgada ao almoxarife, atestando o bom estado das instalações, e ao cheiro a madeira afagada pela cera. É engraçado que a coisas tão pouco importantes, e que nunca se apagarão, se possam resumir as recordações de uma terra. Só voltei a Santo Aleixo muitos anos depois, sem voltar a saber da professora e do rendeiro. Calor, silêncio e o cheiro às madeiras polidas e enceradas ficaram sendo sinónimos da aldeia.
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À volta de Santo Aleixo repousam restos das santo-aleixos doutros tempos. Os nomes são só nomes nos livros de História – Anta da Negrita, Castelo do Murtigão, Bezerra de Ouro –, abandonados nos campos e esquecidos por quase todos. A prosperidade antiga deste território, nos tempos em que os seus campos davam prata, repousa em livros que poucos lêem. Durante séculos, os homens alimentaram-se do ventre da terra. Em segredo, no mais completo silêncio, as minas de prata alimentaram uma prosperidade frugal. Palmo a palmo, metro a metro, a superfície e as entranhas da terra foram revolvidas. Podemos imaginá-los, aos santo-aleixenses de há mil anos, envenenando-se com os vapores do chumbo, enquanto derretiam o minério. Podemos vê-los, por entre o mato, em sítios escondidos à volta de Santo Aleixo, arrancando metais à terra, transformando-os e vendendo-os nos mercados das grandes cidades do sul. Podemos ouvir o seus passos surdos, nas tardes quentes de Verão e nas noites frias de Inverno, escapando às tropas dos imperadores, dos califas e dos reis e ludibriando quadrilhas de ladrões até chegar em segurança à aldeia.
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A prata partiu há mil anos, sem deixar rasto nem memória nem nada.
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Foi aqui que nasceu, no século IX, e que a partir da aldeia desafiou os poderosos do seu tempo, o guerreiro Faraj b. Khayr al-Tutaliqi. Poetas e guerreiros, pastores e mineiros. São ecos que chegaram até nós como sons que se desvanecem e poucos em Santo Aleixo reconhecerão o parentesco com esses remotos antepassados.
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Fora da aldeia, só os pastores e os rebanhos se movem num cenário que pouco deve ter mudado em mil anos. Os fumos do minério deram, contudo, lugar ao espesso negrume dos fornos de carvão, cujo fumo vemos, aqui e além, cortar a linha do horizonte. A dureza do dia-a-dia não mudou e ficará, talvez, como a marca perene num ambiente pouco amigável e que não dá tréguas a quem aqui vive.
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Fora da aldeia, longe da aldeia e longe do mundo, fica o Convento da Tomina, sítio de uma fé casada com o isolamento. O convento foi erigido entre brenhas e penhascos – em sítio áspero e fragoso, diz um texto antigo -, longe de tudo e fora do mundo. Um delírio em pedra argamassada sob a forma de fé, mas não deixa de impressionar a tenacidade dos que levaram a cabo tal empresa e habitaram o convento durante séculos. A Tomina é hoje uma quase miragem. A Senhora da Tomina dá o nome à principal festa religiosa da aldeia.
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Regressemos à aldeia, ao território dos santo-aleixenses. Regressemos ao centro do mundo. Muitas vezes esse mundo teve que se defender à custa do sangue de quem aqui nasceu. Numa ocasião, em 12 de Agosto de 1644, o ataque atingiu dimensões nunca vistas. A descrição que nos chegou refere-se a uma data e a uma ocasião. O que nela se conta ocorreu muitas vezes antes e muitas outras depois. São vozes vindas do passado que nos contam como se tentou tomar a aldeia encostando sessenta escadas às trincheiras e são os mesmos sussurros que nos dizem como depois os habitantes mataram pelas ruas e casas mais de quatrocentos dos inimigos.
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Se pararmos na Rua Lopo Sancas e esperarmos que passe a máquina do tempo veremos começarem a tomar forma vultos e sombras. Olhemos as casas que ardem, os muros das casas que se derrubam para que de umas se pudesse passar a outras: “E como Lopo Mendes quisesse levantar bandeira branca, e pedir quartel, as mulheres que estavam dentro do reduto lho não quiseram consentir, e pegando na bandeira lha fizeram baixar”. Cinzas e lume, dor e morte. Evoquemos a fúria das mulheres de Santo Aleixo, as mesmas que arrancavam lajes da igreja e as atiravam para cima dos inimigos, deixando-os logo sepultados debaixo dos pedaços das campas.
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Tudo acabou na igreja, com o tecto a cair no meio de uma explosão, gente morta e estropiada, outra lançando-se do que restava do telhado. Sentemo-nos no adro da igreja e olhemos o que resta desse cenário terrível: uma lápide onde se lêem os nomes dos homens principais de Santo Aleixo que foram mortos ou ficaram feridos ou cativos. Estranha justiça esta que homenageia só os homens, e dentre estes apenas os principais, aqueles que por riqueza herdada ou adquirida se distinguiam de todos os outros.
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Na igreja de hoje, apenas a placa evoca esses momentos de horror. O silêncio do templo só é quebrado nos momentos de celebração ou nos dias de festa. Nesses dias Santo Aleixo ganha reverberações da Anadaluzia e guerras antigas tornam-se ainda mais difusas.
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A procissão, esse desfile de celebração tão remoto como o Mediterrâneo, marca o compasso da festa. O tamborileiro, tão antigo como a procissão, marca o ritmo do desfile. O percurso é antigo e de todos conhecido. Todos os preceitos passam de geração em geração. Há flores, guiões e andores e imagens. Há anjinhos, música e padres. “A luxúria leva ao fogo”, proclama um clérigo, enquanto moças bonitas e vestidas a preceito vão passando devagar. A quem se dirigirão as palavras? Às moças, a nós ou a si próprio?
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Nos dias de festa a quietude é quebrada e revive uma Santo Aleixo antiga e telúrica. Quando quase todos partem, voltam a quietude e o silêncio, quase só quebrado pelas vozes que, a espaços, ainda ecoam nas tabernas ou pelos insistentes ensaios dos grupos corais.
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Um ritmo conhecido retoma-se nos dias seguintes às festas. Voltaremos mais tarde à aldeia. Partidos os visitantes, soam agora outros passos nas suas ruas. Guardas e carteiros são quem as percorre com regularidade e por dever de ofício. Há menos cartas a entregar e menos ocorrências a registar. Com o passar dos anos, as voltas e os percursos tornam-se mais rápidos.
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Há dias que ficaram lá atrás no tempo e que não se podem retomar. Não podemos aí demorar-nos, não vá o destino tomar conta de nós. Depois de sairmos é a partida sem olhar para trás, porque a podemos perder como a Eurídice. E assim a aldeia mergulha a pouco e pouco no horizonte como uma cidade vista do mar, quando o barco se afasta e nessa altura já não se vê a cidade.
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Em 1758 a aldeia tinha 737 habitantes. Em 2001 eram 842 os residentes. Diáspora e perenidade marcam o horizonte de Santo Aleixo da Restauração. Os que ficam são os guardiães da aldeia. Os que partem talvez não regressem. Os que ficam repousarão um dia à saída da aldeia. Chamam-se Carrasco. Ou Fialho. Ou Caldeira. Ou Quitéria. Ou Balancho. São os santo-aleixenses.
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Texto do livro Santo Aleixo da Restauração, ontem apresentado ao público.