Depois de alguma hesitação - o Miguel Rego sabe bem porquê - decidi-me a publicar este texto que ele escreveu, de homenagem a Fernando Rosa, que foi presidente da Câmara de Mértola entre 1982 e 1993. Onze anos, caramba. Uma entrega total, e que hoje não me parece assim tão reconhecida. Tive o prazer de trabalhar com o Sr. Fernando (era assim que a gente o tratava), nos meus tempos de início em Mértola. E o texto do Miguel é um bonito reconhecimento. E uma viagem aos tempos de Arcádia.
Quando, em Setembro de 1981, me iniciei na arqueologia com o Professor Cláudio Torres, não imaginava que seria o início de um percurso que me traria para o Alentejo. Então, os fornos de cerâmica de formas de açúcar, de pesos de pesca e de formas do biscoito para as “descobertas” resgatadas das escavações da Mata da Machada, ali pertinho de Vale de Zebro, no concelho do Barreiro, foram o primeiro contexto arqueológico que contactei numa escavação onde conheci aquele investigador chegado do exílio meia dúzia de anos antes a Portugal e que era então Professor da Faculdade de Letras de Lisboa.
Apesar de eu não ser aluno de Cláudio Torres, nem sequer aluno da Universidade (ou aluno de escola alguma, diga-se), e apesar da minha vida então se dividir entre servente da construção civil e aprendiz ocasional de “técnico de restauro” no Palácio da Rosa, em Lisboa, a experiência dessas quase três semanas resultaria numa enorme amizade que nos faria reencontrar de novo em escavações, comigo enquanto voluntário em Noudar, em Mértola e de novo na Mata da Machada, até que, a seu convite, rumei a Sul, de forma definitiva, em 1986.
Pelo meio, entre um curso de Arqueologia no Centro de Arqueologia de Almada e a ida até à Gruta do Caldeirão, em Tomar, para escavar com João Zilhão, tive experiências ricas com outros arqueólogos, nomeadamente, com João Luís Cardoso, na Outurela I e II. Mas tive, sobretudo, um contacto aprofundado com o trabalho de Cláudio Torres, em Mértola.
Faço esta introdução do meu percurso de carácter muito pessoal, para justificar toda a restante crónica que aqui trago. Até porque num momento em que muito se fala em Património Cultural, gestão e desenvolvimento, vale a pena deixar aqui duas ideias que me parecem importantes para “entender” a abordagem a esses conceitos, tendo como referência a génese do projecto de Mértola e procurando esclarecer alguma falácia de determinados discursos “fabricados”, desprovidos de contextualização histórica e vestindo uma espécie de saiote anacrónico onde os olhares vestem os discursos de hoje e não as realidades de ontem.
Até porque o que fui encontrar em Mértola foi para mim uma escola que se reproduzia num trabalho desenvolvido em diálogo permanente com a autarquia sem haver o mínimo de intrometimento da estrutura de poder do Município na vida do projecto arqueológico;
Até porque vivíamos o que restava de um período de festa cívica, cultural e política, que o 25 de Abril nos trouxe, onde o descomprometimento com a projecção pessoal era total e o mais importante era o contacto sempre constante entre os fazedores de memória e o repositório dessa memória, em que cada um de nós desempenhava um e outro papel;
Até porque o início do financiamento de projectos de natureza científica permitiam conciliar esse trabalho com uma sempre permanente “agitprop”, expressão utilizada por um certo meio científico a quem o trabalho que se realizava em Mértola causava suores frios e invocava horrores em noites mal dormidas;
Até porque a preocupação permanente de quem estava no projecto era poder, através do Património Cultural, mudar, transformar, reinventar uma nova realidade cultural e social de forma natural, sem quaisquer imposições ideológicas ou de cartilha pré-concebida;
Até porque aquele projecto era a arqueologia e a “longa duração” antropológica, social, geográfica, histórica, humana, em toda a sua dimensão, e não uma outra coisa qualquer;
Até porque aquele projecto estava a ser pensado como quem tem que resolver o dia-a-dia da sua própria sobrevivência na incerteza de ter ou não ter ordenados a horas, de regalias sociais, de férias e fins-de-semana alargados;
Até porque o colocar aquele projecto no terreno era muito mais do que fazer uma simples escavação para dar uma resposta científica (sim, a Arqueologia é uma Ciência) à “abominável” e sempre incómoda presença islâmica em Portugal.
Mértola é um modelo de gestão, com várias nuances, que não é repetível à luz dos dias de hoje. O acaso da passagem por Mértola de alguns actores que, ao lado de Cláudio Torres, em determinados momentos, foram cruciais para que o projecto do Campo Arqueológico desse o salto que o Mestre queria que desse nos anos oitenta, marcou em momentos cirúrgicos todo o seu evoluir. Os nomes de Luís Silva e, sobretudo, de Santiago Macias, são incontornáveis, mas não menos alguns outros silenciosos como o de Manuel Passinhas, o Chola ou o Joaquim Boiça e a Mifas, sem esquecer a estrutura da Associação de Defesa do Património onde a Arqueologia esteve alocada até 1987, cada um com o seu espaço naturalmente definido, fizeram com que este projecto fosse, sobretudo entre 1987 e finais dos anos 90 (a partir daí não conheço o suficiente para falar dele), a génese de um trabalho singular. Um trabalho em que se criou uma rede de museus local de dimensão e dignidade. Em que o nome de Cláudio Torres se impõe nacional e internacionalmente, e de que o Prémio Pessoa é bem o reflexo disso…
Mas, num contexto em que os financiamentos vindos da Europa foram indispensáveis para que o projecto tivesse o êxito que “teve” e que o reconhecimento internacional de Cláudio Torres fosse, não apenas pelo seu papel em colocar a investigação da ocupação islâmica em Portugal na ordem do dia, mas também no desenvolver de um projecto que alterou estruturalmente a perspectiva e estratégia económica para o concelho, é importante não deixar de valorizar um nome que, sistematicamente, teve um papel preponderante em todo este processo. Um nome esquecido, apagado, escamoteado deste momento que aqui trazemos (1987, ano da “fundação” oficial do Campo Arqueológico e os anos 90) que marcará, indubitavelmente, o projecto de Mértola: Fernando Ribeiro Rosa, presidente da Câmara Municipal de Mértola entre 1982 e 1993. O Senhor Fernando.
Este ponderado e responsável autarca foi capaz de perceber que a autonomia do projecto de Mértola e o apoio infra-estrutural ao labor de Cláudio Torres eram fundamentais para que este vingasse; Que a adaptação de alguns projectos de natureza urbana ao desenvolvimento do projecto arqueológico, como por exemplo de toda a intervenção efectuada no Rossio do Carmo, eram estruturantes tanto para a vila “museu” como para a continuidade do projecto de Mértola; Que a sua atitude cívica de entender quais são as fronteiras entre os territórios de um “poder” autárquico e um projecto científico e cultural lhe traria menos visibilidade, mas não menos eficácia; Que a assunção de uma atitude de cooperação e não de intromissão eram obrigatórias; Que o saber que o desenvolvimento sério e real não se faz com a colocação de placas evocativas, mas com a disponibilização de meios para que este se possa concretizar, faz de Fernando Ribeiro Rosa um protagonista silencioso, mas imprescindível, para que o projecto de Mértola pudesse, na época, impor-se.
Hoje, por aquilo que vamos vendo, dificilmente aquele projecto teria ganho tão amplas asas. Mais do que asas, ser corpo renascido, canção! Ali ou em qualquer outro sítio!