quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A PROPÓSITO DE HALQ AZ-ZAWIYA E DE KANISAT AL-GURAB

Fazer corresponder os sítios referidos nas fontes escritas do período islâmico com locais concretos nem sempre é tarefa fácil. Desde logo, porque muitas alçarias desapareceram, depois porque o crescimento urbano fez desaparecer sítios concretos, depois ainda porque nem sempre as descrições ou as localizações primam pelo rigor.

De entre os muitos locais ainda por situar com rigor, dois constituem, desde há muito, um verdadeiro enigma:

1) Halq az-Zawiya, que poderia corresponder a Lagos;
2) Kanisat al-Gurab (a célebre Igreja do Corvo), para a qual se tem apontado uma localização nas imediações do Cabo de S. Vicente.

Em especial, esta última é procurada, de forma quase obsessiva, desde há décadas. O texto de al-Idrisi, autor do século XII (uso a versão de Dozy e de De Goeje, Description de l'Afrique et de l'Espagne), diz o seguinte:

"De Silves a Halq az-Zawiya, porto e aldeia, 20 milhas;
Daí a Sagres, aldeia junto ao mar, 18 milhas;
Dai ao Cabo al-Gharb, que lança no oceano, 12 milhas;
Daí à Igreja do Corvo, 7 milhas.

Esta igreja não conheceu modificações desde a época da dominação cristã; tem terras, que as almas pias têm o costume de lhes dar, e presentes levados pelos cristãos que aí se deslocam em peregrinação. Situa-se num promontório que avança pelo mar. Sobre a igreja estão dez corvos (...)".

Tome-se então como ponto central Silves e façam-se as medições a partir daí. As distâncias não podem ser levadas em rigor excessivo. Tomem-se como padrão os 2.285 metros da “milha omeia”, mas estes valores servem apenas de referência. Por exemplo, de Faro a Silves são 28 milhas, diz al-Idrisi. Seriam 64 kms., na verdade são 54.

Que ponto está a cerca de 40 a 45 kms de Silves e que pode corresponder a um antigo espaço de culto muçulmano? Nem mais nem menos que o local agora conhecido como Ribat da Arrifana. Um sítio de grande importância e que, em época almorávida/almóada, era seguramente local muito conhecido. Se seguirmos a lógica de percurso do texto (de um ponto de partida a um ponto de chegada, exatamente como fez, noutra conhecida descrição, Ibn Hawqal), teremos de seguida Sagres e o Cabo al-Gharb, que me parece corresponder à Ponta da Piedade, se tivermos as distâncias que al-Idrisi aponta.

Ou seja,
De Silves a Halq az-Zawiya (Arrifana) são 20 milhas = 45 kms. Na realidade são 40.
Daí a Sagres são 18 milhas = 41 kms. Na realidade são 36.
De Sagres à Ponta da Piedade (Cap al-Gharb) são 12 milhas = 27 kms. São 26.
Da Ponta da Piedade à Ermida da Senhora da Rocha são 7 milhas = 16 kms. Aqui, a diferença é um pouco maior, na realidade são 31 kms. por terra e, em linha reta, perto de 25 kms..

O Cabo de S. Vicente é sítio demasiado inóspito para poder ter conhecido qualquer fixação deste género. Por outro lado, é inequívoco que a Ermida da Senhora da Rocha está num promontório, hoje muito erodido, e que a igrejinha desse local tem capitéis tardo-antigos reutilizados. Tal como é notável a presença, a curta distância, do topónimo Porches (do árabe burj = torre).

A soma de todos estes fatores parece-me sustentar as hipóteses que aqui se traçam.

Punch-line: um documento da Agência Portuguesa do Ambiente refere que "na face da arriba são já comuns as plantas típicas destes ambientes salinos, bem como as inúmeras aves que por aqui se refugiam: corvos-marinhos, falcões, guinchos, gaivotas e andorinhões".

A hipótese fica lançada. Irei agora desenvolvê-la e trabalhá-la de forma mais circunstanciada.



quarta-feira, 30 de outubro de 2019

terça-feira, 29 de outubro de 2019

PELO ALVITO

Lá para o final da semana, haverá Alvito, a convite do Prof. Jorge Gaspar. O tema, no que me diz respeito, não será só pão, vinho e azeite, mas andará por aquilo que a cronística, os tratados de agricultura, os livros de hisba e a arqueologia nos transmitem. É um regresso a terrenos antigos. A verdade é que tratar o registo arqueológico de um sítio, em termos de alimentação, nos dá "mais do mesmo". As populações consumiam a paisagem, não mais que isso. Os resultados e as conclusões resultam de um contrastar de experiências, nem sempre fácil de financiar e de conseguir. É à volta disso que "andarei".

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

DA IMPORTÂNCIA DA PERSISTÊNCIA NOS DOMÍNIOS DA CURADORIA

A imagem aqui em baixo é de uma conhecida região da Grécia, que deu origem a uma prova de 40 quilómetros. Delinear o guião de uma exposição acaba por ser a parte mais fácil. Já o resto:

* aprovação
* financiamento externo
* pedidos de peças a museus em Espanha, Itália, Marrocos etc.
* diálogo com entidades nacionais
* estruturação do catálogo
* compatibilização com outras iniciativas no mesmo domínio
* etc.

Já o resto, dizia, é um avolumar de situações em que o fácil se torna, subitamente, difícil. Nada de novo, mas ao fim de tantos anos "noutro universo" já quase esquecera esta realidade. Na verdade, e deitando contas à vida, desde 2010 que não organizava nada deste género. E em 2010 a tarefa foi, por razões de ordem geográfica, relativamente fácil. Em 2020 haverá exposição. ESTA, em concreto, nos "terrenos" de um Museu Nacional vai ser uma maratona. Lá chegaremos. É tudo uma questão de tempo, de persistência e de (aqui vai uma das palavras da moda) re-si-li-ên-ci-a. Lá chegaremos. Sem nos acontecer, espero, como a Fidípides.

domingo, 27 de outubro de 2019

E, DE HOJE A UM MÊS...

Dia 27 de novembro haverá conferência em Cascais. Uma estreia absoluta, uma vez que nunca estive na British Historical Society of Portugal. O convite veio na sequência de uma visita a alguns sítios da Lisboa Islâmica, que conduzi na passada primavera. Estava presente um dos membros da B.H.S.P., que me indagou acerca da minha disponibilidade. E assim desembocámos nesta iniciativa.

Nestes tempos de regresso à atividade académica, e ainda que a motivação já não esteja nestes aspetos da vida quotidiana durante o período islâmico, tenho, por uma vez e outra, sido "levado" a retomar trabalhos já antigos. De resto, já o fizera para o livro "929", que sairá dentro de dias.

Será, seguramente, um final de tarde de diferente. Numa altura em que o semestre se aproximará do final e em que 2020 começa a desenhar-se.

Ver - https://www.bhsportugal.org

FINAL DE UMA GRANDE TEMPORADA

Um incidente, no quarto touro da tarde, veio ensombrar um pouco o dia. Nada que tire ponta de valor ao grupo e à magnífica temporada que cumpriu. Como sublinhei mais tarde, durante o jantar, estão em causa o marketing e os jogos de influência. É tão simples quanto isso.

Foi um prazer ter estado em Évora, poder ver a atuação de João Moura Jr. e as pegas dos nossos: João Soares Cabrita, Valter Rico e Rui Branquinho. As tradições são para serem continuadas? Decerto que sim. Essa é uma certeza que se (me) foi sedimentando e uma aprendizagem que (também) fui fazendo.

Este ano fui-os seguindo, e desfrutando da sua companhia, em Beja, Moura, Soustons, Redondo, Évora... O périplo no próximo ano será outro. Lá estaremos.

sábado, 26 de outubro de 2019

CARPINTARIAS DE SÃO LÁZARO: UM TOQUE SÍNICO

Primeira ida às Carpintarias de São Lázaro. Ou estou a ficar velho (decerto que estou, mas não tanto assim...) ou cada vez tenho menos paciência para projetos umbiguistas e ensimesmados. Para não dizer preguiçosos... Esperava muito mais e muito melhor. Quando entrei e vi o que se expunha não pude deixar de pensar "ah, afinal é só isto".

O espaço é ótimo e central. Havia três visitantes às 16:00 de sexta-feira. De entre as várias exposições só gostei mesmo dos trabalhos de Shen Chao-Ling. É um fotógrafo de Taiwan (n. 1968) que se tem dedicado a recolher o insólito (aos olhos ocidentais) mundo dos palcos que enquadram vários momentos da vida do seu país. Com uma exceção, registou-os desertos e em momentos de abandono. Um colorido vibrante e que tenho dificuldade em imaginar como "funciona", com som e pessoas, ao vivo.

Ver:
http://www.shenchaoliang.com
e
https://carpintariasdesaolazaro.org

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

CARMINA BURANA

Diálogo inexistente (mas que podia ter existido, não agora mas em 1987...):

A - Conheces a Carmina Burana?
B - Quem?
A - A Carmina Burana. A fulana que fez a música pró anúncio do Old Spice.
B - Já tou a ver. Cena bestial. Até parece ópera... Acho é o anúncio meio parvo. O que é que o surf tem a ver com a barba?...

AN ENGLISHMAN ABROAD

O dia acabou, inesperadamente, com uma conversa com uma muito jovem amiga sobre os Cambridge Five. Conhece o tema bem melhor que eu. Falei-lhe num telefilme visto há muitos anos na RTP, An Englishman abroad. Nunca dele ouvira falar, tal como não conhecia Another country. Foram ambos mencionados num texto, neste blogue, há muitos anos. Giram ambos em torno da complexa personalidade de Guy Burgess (1911-1963). An englishman abroad é um daqueles filmes "desaparecidos". Os nomes eram de peso: John Schlesinger, Alan Bates, Alan Bennett...

Lembro-me da elevada qualidade do telefilme. Não saberei dizer porquê. Mas recordo, com todo o detalhe, a última cena com Burgess/Bates passeando pelas ruas de Moscovo, em tom flamboyant e como se estivesse no centro de Londres.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

CULTURA CLÁSSICA - UMA VISÃO TRUMPIANA


The United States and Italy are bound together by a shared cultural and political heritage dating back thousands of years to Ancient Rome - Donald Trump

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

ESTRADA DA COMENDA

Subindo hoje devagar, em direção à igreja de S. Francisco, surgiu-me este início de um poema:

Para além da curva da estrada 
Talvez haja um poço, e talvez um castelo, 
E talvez apenas a continuação da estrada. 


O poema é de Alberto Caeiro, e há coincidências a que não podemos escapar...

Ao fim da tarde, havia luz e um calor de inverno, em Moura. Depois, a noite ficou escura e fria.

Estrada da Comenda é uma obra de Manuel Amado.

domingo, 20 de outubro de 2019

BAIRRO DO CARMO - 22.10.2019

Recebi, do Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal de Moura, convite para estar presente na cerimónia de entrega de chaves aos moradores do Bairro do Carmo, na sede do concelho. Não sei se conseguirei estar presente, mas a conclusão deste processo é motivo de satisfação.

É o culminar de um longo caminho, que visou a reabilitação daquele conjunto de habitações. O projeto que, em 2015, se elaborou contemplou a instalação de sanitários e de cozinhas dotadas de condições em todas as habitações. Deixam de existir lava-louças ao ar livre e duches partilhados. O projeto prevê, por outro lado, a manutenção dos pátios enquanto espaço de utilização coletiva.

O contrato foi assinado mesmo no final do mandato autárquico de 2013/2017. Arrisco mesmo a dizer que foi o último contrato que assinei...

Valor total da empreitada - 477.180,90 €
Autoria do projeto – Arqs. Nuno Lopes e Sara Potes
Empresa - Virgílio de Sousa Leal

sábado, 19 de outubro de 2019

HIPÓCRATES DESONRADO

O juramento não é obrigatório, mas faz parte da tradição da classe médica. É dito de Hipócrates, em homenagem a um dos pais da Medicina, que viveu na Grécia entre 460 e 370 a.C.. Tem sido sucessivamente atualizado, de acordo com os tempos em que se vive. A última versão data de 2017.

COMO MEMBRO DA PROFISSÃO MÉDICA:
PROMETO SOLENEMENTE consagrar a minha vida ao serviço da humanidade;
A SAÚDE E O BEM-ESTAR DO MEU DOENTE serão as minhas primeiras preocupações;
RESPEITAREI a autonomia e a dignidade do meu doente;
GUARDAREI o máximo respeito pela vida humana;
NÃO PERMITIREI que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o meu dever e o meu doente;
RESPEITAREI os segredos que me forem confiados, mesmo após a morte do doente;
EXERCEREI a minha profissão com consciência e dignidade e de acordo com as boas práticas médicas;
FOMENTAREI a honra e as nobres tradições da profissão médica;
GUARDAREI respeito e gratidão aos meus mestres, colegas e alunos pelo que lhes é devido;
PARTILHAREI os meus conhecimentos médicos em benefício dos doentes e da melhoria dos cuidados de saúde;
CUIDAREI da minha saúde, bem-estar e capacidades para prestar cuidados da maior qualidade;
NÃO USAREI os meus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça;
FAÇO ESTAS PROMESSAS solenemente, livremente e sob palavra de honra.

Posto isto, cabe perguntar a quem faz este juramento como é que permite que uma família aguarde três dias para que se faça uma autópsia e se prestem as últimas homenagens a alguém que partiu deste mundo. Em que escola de humanidade, ou de arrogância, foram treinados?

Hipócrates, numa miniatura bizantina do século XIV

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

CAI A CHUVA NO PORTAL

O post de hoje, quase privado, é dedicado a um grupo de velhos amigos. Eles, e eu, sabemos a razão.

Cai a Chuva no Portal
Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa cortina
Não a corras, não a rasgues, está caindo
Fina chuva no portal da nossa vida.
Gotas caem separando-nos do mundo
Para vivermos em paz a nossa vida.

Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa toalha
Ela nos cobre, não a rasgues, está caindo
Chuva fina no portal da nossa casa.
Por um dia todos longe e nós dormindo
Lado a lado, como páginas dum livro.
Lídia Jorge

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

MÉRTOLA CINEMATOGRÁFICA

Assim, de uma assentada, vamos ter dois filmes com Mértola, e Cláudio Torres, no centro das atenções. São eles O último porto, de Pierre-Marie Goulet, e 4 estátuas romanas - arqueologia e sonhos em Mértola, de José Manuel de Sousa Lopes. Os títulos remetem para trabalhos publicados. Sou autor de um deles, mas o título não me "pertence". Tomei-o de empréstimo a Cláudio Torres, com a sua devida autorização. O outro título recupera um artigo dado à estampa em junho de 1979: Mértola: o castelo, arqueologia e sonhos.

O último porto será apresentado no DOCLISBOA, no próximo dia 24. Lá estarei. E também espero estar quando a outra obra estrear. Vai ser bom assistir a esta revisão do passado. São 41 anos de projeto.


ABANDALHAMENTO INTERNACIONAL

A carta que o presidente dos Estados Unidos enviou ao presidente turco é mais um passo no intenso processo de abandalhamento institucional, agora tão em voga. Eis as relações entre dois Estados trazidas para o nível conversa-de-café.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

IBN HAYYAN E IBN MARWAN

Reli há dias, pela enésima vez, o Muqtabis V, crónica escrita por Ibn Hayyan (987-1075) sobre o percurso de Abd ar-Rahman III entre os anos de 912 e 942 d.C.. É uma obra essencial para se perceber o trabalho de unificação política operado pelo futuro califa.

Livros como este, outrora inacessíveis, foram divulgados por gente empenhada e competente como Maria Jesus Viguera e Federico Corriente. A edição de que disponho, dada à estampa pela ANUBAR em 1981, está surradíssima. Continuo a divertir-me com a sua leitura, como se fosse a primeira vez que abrisse o livro. A minha passagem preferida continua a ser a "avaliação", muito pouco objetiva..., que o cronista faz dos Banu Marwan, senhores do ocidente e uma permanente dor de cabeça para o poder cordovês: "A ellos fue [an-Nasir, o futuro califa] con todo su poder, empezando por el señor de Badajoz, que era entonces Abdarrahman b. Abdallah b. Abdarrahman, llamado al-Jilliqi, heredero de su poder de cuatro antepasados, distinguidos en el error y firmes en la perdición: an-Nasir hizo alto a las puertas de Badajoz, cueva de disensión, nido de perdición y comienzo de su bisabuelo, Abdarrahman b. Marwan, aliado del diablo y gérmen del error (...)". Ao citar esta passagem na aula, não pude deixar de comentar "o nosso amigo Ibn Hayyan cumpria bem o seu papel de cronista a soldo do poder, detestando sinceramente os inimigos dos patrões...".

Não é uma exceção. Esta linguagem colorida repete-se noutros cronistas. Ibn Sahib al-Sala no "Al-mann bil-imama" não lhe fica atrás... São argumentos a favor de uma visão da História menos solene e mais próxima da vida real.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

DO CURDISTÃO PARA SILVES

Tenho-me lembrado muitas vezes, por estes dias, da pequena aldeia de Qalb Lozeh, no Curdistão sírio. Fui lá propositadamente por causa de uma majestosa basílica do século V. Que me deixou a certeza, final e irreversível, que o mundo oriental é outra realidade.

Uma fotografia de Qalb Lozeh será exposta, em novembro, em Silves. Um terra com um toque oriental, no extremo ocidente.

O que será feito da aldeia?
O que terá acontecido à basílica?
Onde andarão aquelas crianças, que terão agora 20 e poucos anos?




Eia, Abú Bacre, saúda os meus lares em Silves e pergunta-lhes
se, como penso, ainda se recordam de mim.

Saúda o Palácio das Varandas da parte de um donzel
que sente perpétua saudade daquele alcácer.

Ali moravam guerreiros como leões e brancas gazelas.
E em que belas selvas e em que belos covis!

Quantas noites passei divertindo-me à sua sombra
com mulheres de cadeiras opulentas e talhe fatigado,

brancas e morenas, que produziam na minha alma
o efeito das espadas refulgentes e das lanças obscuras!

Quantas noites passei, deliciosamente, junto a um recôncavo do rio
com uma donzela cuja pulseira rivalizava com a curva da corrente!

O tempo passava e ela servia-me o vinho do seu olhar
e outras vezes o do seu vaso e outras o da sua boca.

As cordas do seu alaúde, feridas pelo plectro, estremeciam-me
como se ouvisse a melodia das espadas nos tendões do colo inimigo.

Ao retirar o seu manto, descobriu o talhe, florescente ramo de salgueiro,
como se abre o botão para mostrar a flor.

Al-Mutâmide (1040-1095) e a sua Evocação de Silves. Um poema e a não menos poética tradução de António Borges Coelho.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

JARDIM DA IGREJA

Passei o dia com a palavra igreja ecoando. Ora era a Sé de Lisboa e os 29 passos da minha via crucis privada, ora se me cruzavam na escrita os que se converteram ao Islão, mas tinham origem cristã (os muwalladun da nossa Idade Média meridional). Acabei lendo o poema Jardim da igreja, de Cecília Meireles, e vendo a Torre da igreja de Domburg, de Mondrian. Para fauvismo, todo aquele ambiente é de uma enorme placidez. O que ajudou a desenlear o trabalho, valha a verdade.


Dalila e Lélia,
e Júlia e Eulália
cortavam dálias.

Dalila e Lélia,
Eulália e Júlia
cantavam dúlias.

Dálias e dúlias
e harpas eólias...

E a alada lua
-- alta camélia?
-- célia magnólia?

domingo, 13 de outubro de 2019

BOM DOMINGO! E TRATEM LÁ ESSE RACISMO...

Já muito se disse e escreveu sobre a presença de uma bandeira da Guiné-Bissau nos festejos da eleição de Joacine Katar Moreira. Não votei no Livre e não conheço pessoalmente a deputada eleita.

Já muito se escreveu, bem e muito melhor do que eu poderia dizer, sobre o disparate da intolerância por causa de uma bandeira.

Registo apenas que os intolerantes com a bandeira da Guiné-Bissau são os mesmo que se comovem, cheios de paternalismo, quando guineenses, em plena cidade de Bissau, empunham a bandeira portuguesa, não para celebrarem a eleição de uma deputada, mas a conquista de um título europeu. Aí sim!, isso é aceitável. Porque somos povos irmãos etc. e tal. Trata-se de uma fraternidade num só sentido. De lá para cá, sim. De cá para lá, muito menos.


sábado, 12 de outubro de 2019

TARDE NOS AMARELOS

Ou, como gosto de dizer, tarde em terra firme. Não só a exposição ficou montada em tempo recorde, como a abertura teve lugar à hora marcada. Mais importante ainda, o Rui Caeiro, o Daniel Rodrigues e a Liliana Rodrigues brindaram-nos com uma magnífica interpretação de duas peças musicais.

Uma tarde entre amigos, que se prolongou por um bom par de horas. As Caligrafias ficam na sede dos Amarelos até dia 2 de novembro.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

DOR E GLÓRIA

Não tenho ido muito ao cinema. Não é tanto a falta de tempo, mas a falta de paciência. Boa parte do que tenho visto é complacente e pretensioso. Sobra Almodóvar e não muito mais. Dor e glória é um filme acima da média. Tem uma história, que é a própria dor de alma do realizador. E tem coisas muito "almodovarianas". A cor, o festivo trabalho da cor, e a escolha das músicas. Os enquadramentos, cheios de insertos. Tem melodrama. É exagerado e completamente espanhol. Bom, e tem Banderas e Penelope, que são mais de meio filme. No meio de tanta coisa que é maçadora, menos mal que temos Almodóvar. Dor e glória é o filme destes dias. E não me perguntem por óscares e palmas, que é o que menos conta...

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

PRÉMIO RAFAEL MANZANO 2019

O Prémio Rafael Manzano deste ano foi atribuído aos arquitetos portugueses Alberto Castro Nunes e António Maria Braga. Muito melhor que eu as palavras do júri sublinham as razões desta distinção, sublinhando-se que se têm destacado en la práctica de las tradiciones arquitectónicas portuguesas, tanto en la realización de nuevos edificios clásicos y vernáculos, en su mayoría encargados por diversas administraciones públicas, como en sus intervenciones sobre edificios existentes. En el desarrollo de esta labor es notorio su fuerte compromiso con los materiales naturales y los oficios tradicionales de la construcción, buscando que sus obras se caractericen por su durabilidad, su sostenibilidad y su belleza. Cada uno de sus trabajos constituye un verdadero manifiesto sobre la formación cívica, el respeto al carácter propio del lugar, el humanismo y la dedicación a la comunidad. Se trata en general de obras de pequeña escala, o descompuestas en elementos capaces de recuperar ésta, que logran sanar los tejidos urbanos en los que se insertan, recuperando su equilibrio con la naturaleza y con la cultura local. Además, su utilización de las formas clásicas y vernáculas no está exenta de creatividad y originalidad, lo que es buena muestra de su maestría arquitectónica.

Parabéns! É sempre agradável ver o reconhecimento do trabalho de gente amiga e dedicada.

Ver mais em https://www.premiorafaelmanzano.com

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

NOTÍCIAS QUE NÃO EXISTEM

As revoltas populares no Equador "não existem". Tal como são uma inexistência a revolta popular ante os acordos subscritos pelo atual presidente. Também não existe a atitude de um presidente que, ante os protestos, fugiu da capital. Dos comentadores nacionais, nem um pio. E tanto que eu gostava de ouvir a opinião deles sobre Lenin. O de Quito, não o outro, claro.

O NOME DIZ-ME ALGUMA COISA...

É uma jovem simpática. Tem a idade da minha filha mais nova. Licenciou-se na NOVA, em FCSH, na área de Comunicação. No outro dia mencionei-lhe o nome de José Mattoso. Sabia que tinha sido lá professor, menos mal. Já a referência a Oliveira Marques (1933-2007) mereceu-lhe o seguinte comentário “não sei quem é, mas o nome diz-me qualquer coisa”. O nome que lhe diz qualquer coisa foi um dos responsáveis pela criação da Faculdade onde ela estudou. Foi um dos historiadores mais marcantes da segunda metade do século XX, com obra de grande importância no domínio da Idade Média.

Foi diretor da Biblioteca Nacional de Portugal entre 1974 e 1976.

Professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa (a partir de 1976), foi presidente da comissão instaladora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e presidente do conselho científico Faculdade.

Em 1980 fundou o Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, a cujo labor se deve, entre muitas outras coisas, a publicação das chancelarias e das cortes.

Já praticamente retirado do Departamento de História, ainda tive a sorte de o ter como professor no mestrado, em 1991/92. Um privilégio raro, ainda para mais por eu ser o único aluno desse mestrado. Acreditem que o Prof. António Oliveira Marques foi bem mais do que um nome que "diz qualquer coisa". Mas é a isso que estamos fadados, não é verdade?

terça-feira, 8 de outubro de 2019

O MUNDO CONTEMPORÂNEO? ISSO É FÁCIL... HÁ O FACEBOOK, O INSTAGRAM, A NETFLIX...

Primeiro, cortam horas na disciplina de História (essa inútil "fantasia"...).

Depois, criam novas disciplinas para ajudar os alunos a compreender o presente. O que resultaria, entre outras coisas, do ensino sedimentado da História. E de outras inúteis "fantasias", como a Língua Portuguesa, a Filosofia, a Literatura etc.

Ajudar os alunos a "interpretar o presente", com esta receita, é a rendição final à simplificação, ao esquematismo, ao facilitismo e à estupidificação. E à doutrinação.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

CALIGRAFIAS EM MOURA

No próximo sábado, dia 12, às 16:00, tem lugar, em Moura (na sede de "Os Amarelos"), a inauguração da exposição fotográfica "Caligrafias".

É o quinto ponto num percurso iniciado em Évora, há quase um ano. Depois de Alvito, Cuba e Mértola, vai ficar umas semanas na minha terra. Rumará depois mais para sul. Próxima e sexta paragem: Silves.

7.10.1969 - PRIMEIRO DIA NA ESCOLA PRIMÁRIA

No primeiro dia, fui levado e mostraram-me o caminho. No segundo, disseram-me "já sabes onde é a escola, não te atrases". Tinha 6 anos e a escola não ficava muito longe. Da Rua Nova da Estação à Rua da Assaboeira (nome antigo) são uns 700 metros. Quase 3 quilómetros a pé por dia, o que só me fazia bem. Fizesse chuva ou sol. Não tínhamos carro, bem entendido. Só fui uma vez de táxi, no dia em que caí da cama e parti a cabeça, tive de ser suturado no hospital e ala para as aulas (de carro, o que causou alguma sensação...), que não há cá tempo para mariquices.

Foi a minha primeira e mais importante escola. Como tive oportunidade no explicar à Professora Jacinta Acabado no dia em que lhe fui oferecer a minha tese de doutoramento, sem ela nunca teria ali chegado (ler também aqui).

Faz hoje 50 anos que entrei para a escola primária. Foi a 7 de outubro de 1969. Era  uma terça-feira.


A nossa primeira escola: Rua Dr. Garcia Peres, 45 (1º. andar)

Alunos dos anos 1969/1973:
António Manuel Pato Oca
Carlos José Albardeiro Barradas
Carlos Manuel Coelho Brito
Carlos Manuel Ramos Pinto
Fernando Brito Oliveira Pinto
Helder Barqueta Condeça Feliciano
Helder Silva Arsénio
Joaquim Elias Andrade Ventinhas
Joaquim Manuel Moita Araújo
José António Beiras Sinfrónio
José Carlos Oliveira Farinho
Luís José Fonseca Infante
Rui Manuel dos Santos Pires Marques
Santiago Augusto Ferreira Macias
Vanda de Jesus Lopes Oliveira Gomes

domingo, 6 de outubro de 2019

SÁBADO NO INTERIOR

Passei o sábado no interior. Quase encostado à fronteira, naquela que é a minha Pátria. Não refleti grande coisa, mas foi um dia em cheio. Entre amigos e entre gente solidária.

12:20 - Nos Amarelos, em Moura. Uma hora traçando o que vai ser a montagem das Caligrafias, que acontecerá dentro de muito poucos dias.

13:15 - No mercado de Moura, com a grande equipa da Comissão de Festas. O elevado número de encomendas criou ali algumas dificuldades. Tudo acabou bem e o almoço tardio até soube melhor.

18:00 - Corrida de touros, no Coliseu do Redondo. O Real de Moura dando excelente conta de si. Já lá vai mais de uma dezena de pegas "à primeira". Já houve "limpas" pelo meio. À conta disso o pós-corrida prolongou-se mais do que o previsto. O regresso a Mértola foi de alma cheia.

Redondo

Mercado

Amarelos

OS MUSEUS: DO PASSADO PARA O FUTURO

Luís Raposo, Presidente do ICOM - Europa, publicou na sexta-feira um importante texto no PÚBLICO. Um excerto que me parece especialmente relevante:

Maria Vlachou, gestora e comunicadora cultural, com mestrado em marketing de museus, considerou ser nas direcções dos museus que está o mal que os condena ao elitismo, dado que elas se dedicam sobretudo “ao estudo e preservação das colecções” e “não apresentam uma visão de futuro, não se vêem como fazendo parte da infra-estrutura educativa e cultural do país, não assumem um verdadeiro compromisso com toda a sociedade” (Público, 21 de setembro de 2019). Noutras ocasiões, acrescentou que as tradicionais formações em domínios que habilitem a saber interrogar as colecções de cada museu devem ser consideradas acessórias, sendo principal a que ela mesma protagoniza, a de gestão cultural. Importa dizer claramente dito que se trata de uma total inversão de prioridades, a que se opõem os representantes dos profissionais de museus portugueses, tanto o ICOM Portugal como a APOM (esta ainda mais vivamente).

Depois deste texto ter sido publicado houve lugar a uma troca de opiniões entre o autor do artigo e Maria Vlachou. Devo dizer que estou alinhado com as posições de Luís Raposo. Deve ser a minha faceta conservadora. Literalmente falando.


Texto completo - https://www.publico.pt/2019/10/05/culturaipsilon/opiniao/nova-geracao-directoras-directores-museus-1888445

sábado, 5 de outubro de 2019

FRAUDE NA ARTE OU É A FRAUDE UMA ARTE?

No centro da ação estão um negociante de arte, Giuliano Ruffini e um pintor desconhecido, Lino Frongia. Obras falsificadas têm sido vendidas por milhões no mercado internacional. Frongia dedicava-se a pintar cópias de obras de grandes mestres. Ao que parece, ter-se-á entusiasmado e ido um pouco mais além.

A fraude artística é, em si, uma arte? Também. Orson Welles mostra-o em F for fake.


Um Franz Hals falsificado.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O VOTO NA CDU OU COM O PCP, INFIELMENTE

Um dos dados mais interessantes das sucessivas análises dos politólogos e da "imprensa livre" é o declínio eleitoral do PCP e da CDU. Ora bem:

2002 – 6,94% – 12 deputados
2005 – 7,54% – 14 deputados
2009 – 7,88% – 15 deputados
2011 – 7,90% – 16 deputados
2015 – 8,25% – 17 deputados


Qualquer alteração negativa será vista como um "agora sim, vão deixar de existir". Qualquer subida será ignorada pelos analistas, porque há sempre coisas mais relevantes e mais importantes. Declaração de interesses: vou votar CDU, no próximo domingo. Dupla declaração de interesses: não só no próximo domingo, mas nas eleições seguintes, enquanto o PCP mantiver esta identidade e esta verticalidade.

Não foi sempre assim. Sempre prezei a minha liberdade. Arrependimento, só tenho um: ter apoiado e ter votado Pintasilgo, em 1986. Nas autárquicas sempre votei CDU (excetuando para a Assembleia Municipal de Mértola, em 1997, em que votei no PSD, porque a lista era encabeçada por Teresa Patrício Gouveia) e nas legislativas votei UDP-PSR e, depois PSR, em 1985 e em 1987. Não votei CDU nas Europeias de 1989, porque estava nas listas uma pessoa que não me merecia a mínima confiança (o percurso seguinte da referida pessoa viria dar-me razão). Há 25 anos, e com a aludida exceção, tenho-me mantido firme nas minhas opções.

Fui, com o tempo, ganhando a funda convicção que o que incomoda no PCP e no projeto da CDU são a coerência, a verticalidade, os princípios e o facto de não se estar à venda. Podem atacar, têm atacado!, de toda a maneira e feitio, podem denegrir, podem troçar ("ultrapassados", "caducos", "antiquados" etc.), podem caluniar (a TVI à cabeça, mas há muito mais), que a firmeza se mantém.

Fui vereador e presidente de câmara eleito nas listas da CDU. Constatei a seriedade da estrutura do Partido, a forma digna como os problemas são tratados. Nunca, em nenhum momento!, me foram sugeridos "esquemas", "negociatas" ou contratações de empresas deste ou daquele amigo ou camarada. A lisura foi total. Se isso é o que se espera e o que é normal, não é o que vemos noutros partidos. Disso darei testemunho no livro em preparação.

Podia continuar a escrever e a explicar quês e porquês. Dispenso-me de o fazer. Dia 6 votarei na CDU. E não será só no próximo domingo, mas nas eleições seguintes, enquanto o PCP mantiver esta identidade e esta verticalidade.


ALÔ, UNIDADE DE MISSÃO PARA A VALORIZAÇÃO DO INTERIOR - VERSÃO GNR

O texto, no LIDADOR NOTÍCIAS, dispensa comentários. Estamos à mercê dos burocratas, das folhas excel, das não-soluções. Este golpe é quase de misericórdia. Uma segurança das 9 às 5, em regime repartição?

Pobre interior... Ai de nós...

“¡Pobre México, tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos!” - Porfirio Díaz (1830-1915). Penso muitas vezes nestas palavras.