domingo, 31 de maio de 2009

PORTUGAL E O MAGREBE

Lê-se hoje, no Público, na entrevista de Inês Sequeira a Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da Aecops-Associação das Empresas de Construção e Obras Públicas:
.
Países do Norte de África começam a fechar portas à entrada de construtoras portuguesas
As vias abertas em visitas de Estado estão a fechar-se em Marrocos e na Argélia, que poderiam ser alternativa ao arrefecimento angolano e à quebra interna do sector


P - Sente-se ou não o aumento do proteccionismo?
R - Já há indícios, em alguns mercados, de que pode haver uma limitação à entrada de novos actores. No Norte de África, por exemplo, já se sente isso: na Argélia, em Marrocos, nos requisitos que são colocados nas fases de qualificações, nas dificuldades de operar quando se está no terreno... Há algum arrefecimento das vias que foram muitas vezes abertas por influência política.



Tenho algumas dúvidas que a brevidade da afirmação justifique o destaque que foi dado ao tema, com direito a chamada de primeira página. Mas isso cabe, evidentemente, no âmbito das opções editoriais. É, contudo, inegável que o tema em si justifica a maior atenção.


Os empresários estão preocupados com a atitute proteccionista dos governos magrebinos? Os equívocos com o Magrebe não são de hoje. No meio de uma orientação claramente europeísta o Norte de África nunca foi opção. Facto surpreendente, se considerarmos a importância das jazidas de gás de Hassi Messaoud e a importância do petróleo líbio. Facto extraordinário, só há dois anos Portugal se dignou abrir representação diplomática em Tripoli. Tire-se o chapéu ao actual governo.


Nunca vi, contudo, que o interesse em mercados competitivos fosse acompanhado por uma ofensiva político-cultural digna de registo. Quantas empresas portuguesas se dedicam a operações de mecenato nesses países? E qual foi o investimento nesses domínios? Quantas exposições de artistas portuguesas são promovidas? Que intercâmbios com produtores culturais efectivamente ocorrem e quais os seus resultados? Quantos cursos de língua portuguesa existem e quais os seus níveis de frequência? Quantas publicações em língua árabe (ou em versão bilingue) temos disponíveis sobre um património comum? Quantas missões técnicas no âmbito do património existem e que resultados produziram? As perguntas poderiam multiplicar-se e poderíamos tranquilamente esperar por respostas que não existem.


Há motivos para termos esperança? São muito ténues, e por mais esforços que pequenos grupos marginais possam fazer, as opções e os resultados passam aqui por soluções institucionais e pelo mainstream. Tlemcen não é Uppsala e querer cegamente adaptar ao Norte de África lógicas europeias é apenas o primeiro passo para o desastre...




Corredor de um palácio otomano no centro do Cairo, fotografado em Março de 2006.

PAUSA DOMINICAL - 2ª PARTE

Recebi, ontem, por mail esta inspirada e divertida publicidade. O Liberato fica em Moura, na 2ª Rua da Mouraria. Não tem página web, mas o contacto está aqui bem visível.

PAUSA DOMINICAL PARA UM POST OCIOSO

Ando, desde Outubro de 2005, literalmente com a casa às costas. As obrigações na Câmara Municipal de Moura têm implicado vindas cada vez mais irregulares a Mértola. Cruzo a rua carregado de cabides, com camisas, calças e fatos em equilíbrio instável. O espectáculo, de tantas vezes repetido, intrigou sobremaneira um pequenito da vizinhança que, do alto dos seus cinco anos, às tantas não resistiu e me perguntou: "Essa roupa é tua?". Ante a minha confirmação disparou: "Olha lá, tu vendes roupa?". Pois é...

sábado, 30 de maio de 2009

SEMPRE EM FRENTE, COM FÉ ARDENTE

As expectativas do Helder Feliciano, presidente do Moura Atlético Clube, até nem eram grandes. Contudo, na gala de ontem, da Rádio Castrense, o clube arrecadou dois dos quatro prémios para os quais fora nomeado. Para além do galardão de melhor treinador (Paulo Xabregas), o próprio Helder foi distinguido como dirigente do ano. Na hora de subir ao palco falou pouco, mas falou bem. Com elegância, fez questão de partilhar o prémio com todo o elenco directivo.
.
Gostei de ter estado ontem à noite, em Castro Verde. Como sócio do MAC, como colega da escola primária do Helder e como vereador da Câmara de Moura.

EL DERECHO DE VIVIR

Foi preso um dos autores materiais do assassinato do cantor chileno Victor Jara (1932-1973), cuja execução ocorreu poucos dias depois do golpe militar montado por Augusto Pinochet. José Adolfo Paredes Marquez foi um dos que disparou contra o cantor. Tem hoje 54 anos, era um adolescente de 18 à época em que os factos ocorreram.
.
Citemos o despacho da EFE /Santiago do Chile:
La investigación se reabrió a principios de junio, cuando el magistrado acogió gran parte de las 40 diligencias solicitadas días antes por el abogado querellante y representante de la familia, Nelson Caucoto. Caucoto manifestó el martes su disconformidad con el dictamen del juez, ya que adujo que el interés de la familia del cantautor es dar con el paradero de los autores intelectuales del crimen."No es nuestro interés perseguir a los reclutas, son una parte dentro de todo el eslabón, son la parte más débil. Me interesan los jefes (...), los que dieron las órdenes de ejecución de Víctor Jara", subrayó. Tras 36 años de investigaciones, sin embargo, el principal, acusado, un militar apodado por los prisioneros como El Príncipe, permanece sin identificar.
.
Há aqui factos preocupantes e agitam-se as habituais cortinas de fumo. Independentemente da responsabilidade material de jovens recrutas, que parece indesmentível, a procura de bodes expiatórios é mais que evidente. Está por entender até que ponto se fizeram esforços sérios para identificar El Principe. Fica por clarificar a quem interessa a detenção de peões de brega, quando o que importa é, e como refere Nelson Caucoto, identificar os chefes.
.
Já agora, nunca se esqueça o papel tido, neste e noutros actos de repressão da era Pinochet, por Manuel Contreras (n. 1929), sinistro personagem e directo responsável pelo assassinato de patriotas como Carlos Prats e Orlando Letelier.


quinta-feira, 28 de maio de 2009

PARTIDO SOCIALISTA AIRLINES

Transcrevo o texto assinado por Inês Patola, hoje no site da Rádio Voz da Planície:
A EDAB e a EDIA realizam hoje o primeiro dia aberto do Aeroporto de Beja e de Alqueva para fazer, junto de alguns autarcas e empresários desta região, o ponto de situação no que diz respeito ao desenvolvimento destes dois projectos
Ao longo do dia vão decorrer visitas a algumas infra-estruturas do Aeroporto e de Alqueva e a alguns investimentos privados que já estão a decorrer sobretudo ligados à agricultura.
Ao que tudo indica esta iniciativa deverá ter outras edições, dedicadas a outros públicos como afirmou Jorge Pulido Valente, Vogal do Conselho de Administração da EDIA.
Jorge Pulido Valente vai marcar presença, enquanto Vogal do Conselho de Administração da EDIA, neste dia aberto do Aeroporto de Beja e de Alqueva e à noite vai estar, enquanto cabeça de lista do PS à autarquia bejense, numa sessão pública promovida pela sua candidatura e que vai abordar o tema “Beja Capital Aeronáutica”. Segundo Jorge Pulido Valente é pura coincidência estas duas iniciativas surgirem no mesmo dia.

Claro que sim. É óbvio que temos um feliz conjunto de felizes coincidências:
Coincidência nº1: A EDAB e a EDIA promovem um "Dia Aberto", sendo que o administrador que presta declarações é o mesmo que é candidato pelo PS à Câmara de Beja.
Coincidência nº2: O candidato Vital Moreira, decerto com saudades dos tempos da Reforma Agrária, desce aos confins do Alentejo para visitar as obras do aeroporto de Beja. No memo dia que é aberto.
Coincidência nº 3: O candidato do PS à Câmara de Beja promove um encontro sobre Beja - capital aeronáutica logo à noite. No mesmo dia que é aberto e em que Vital Moreira desce ao Alentejo e visita as obras do aeroporto.

Ena, tanta coincidência!

Deve ser isto o que se chama hard landing...


quarta-feira, 27 de maio de 2009

1812

Há momentos que quase dispensam palavras. Primeira parte da Abertura 1812, de Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), dirigida por Seiji Ozawa (n. 1935).






Não resisto a reproduzir esta tira sobre a peça de Tchaikovsky. Bill Watterson (n. 1958) é o autor da genial série Calvin e Hobbes. Furiosamente independente, nunca permitiu que as suas criações caissem nas garras do "merchandising". Ainda há poetas assim...

ARQUEOLOGIA - PARTE I

Fui buscar esta a um dos meus blogues preferidos, o 5dias.



Segundo Vital Moreira: "chegou-se a invocar estranhamente que já não há grande capital em Portugal, uma coisa que evidentemente é falsa e portanto é necessário nacionalizar o grande capital."

Acho que sim. Amigo Vital, vamos a eles! Aqui entre nós, Vital, só não estou de acordo com o penteado e com a armação dos óculos. Mas eu não digo a mais ninguém...

terça-feira, 26 de maio de 2009

A MALA MEXICANA

Não é só por cá que documentos tidos como perdidos se encontram, por acaso, em armazéns em Queluz. Há outros sítios onde tal acontece.

A história da mala mexicana tem contornos rocambolescos. Resuma-se (muito) a trama: durante mais de 60 anos perdeu-se o rasto a 127 rolos, cerca de 3500 de negativos, deixados em Paris no começo da 2ª Guerra Mundial. Autores? Nem mais nem menos que Robert Capa, David Seymour e Gerda Taro. Nos anos 90, começam a soar rumores de que os célebres rolos ainda existiam. Mais de uma década passada em negociações, encontros e desencontros, ei-los que surgem.

Robert Capa (1913-1954) morreu na Indochina, ao pisar uma mina.
David Seymour (1911-1956) morreu durante a Crise do Suez, abatido por uma rajada de metralhadora.
Gerda Taro (1910-1937) morreu na Guerra Civil de Espanha, em consequência de um acidente.
Hoje temos a tendência para pensar que eram todos de origem anglo-saxónica, mas o primeiro era húngaro, o segundo polaco, a terceira alemã...

Há pouco mais de dois meses Ségio Gomes assinou um belíssimo trabalho na Pública sobre o tema:

Veja-se também, no mesmo jornal:

Para quem nem tudo esteja resolvido, e um pouco de penumbra persista, continua a faltar o negativo da mais célebre imagem da Guerra Civil de Espanha e que, supostamente, retrata a morte de um anarquista em Cerro Muriano.

AMÉRICA DO SUL, PURA E DURA

O contacto chegou-me por intermédio de um comentário feito a um dos meus posts, há umas semanas atrás. Um estudante brasileiro, identificado como AF STURT, é um dos dinamizadores do blog TUDO É HISTÓRIA. O tempo das revoluções passou? Pois, pois, contem-me dessas... Sigam o perfil do blogger e vejam a nutrida lista de entusiásticos blogs que ele segue.

Já agora, e mesmo com todas as contradições dos percursos pessoais e políticos de cada um - um ou outro não estarão exactamente no espectro de uma esquerda clássica - aqui ficam os nomes que nas Américas, Central e do Sul, fazem com que aquele imenso continente sejam bem mais frequentável, do ponto de vista político, que há umas décadas atrás:

Bolívia: Evo Morales – presidente desde 2006 (Movimento para o Socialismo)
Brasil: Lula da Silva – presidente desde 2003 (Partido dos Trabalhadores)
Chile: Michelle Bachelet – presidente desde 2006 (Partido Socialista do Chile)
Cuba: Raul Castro – presidente desde 2008 (Partido Comunista)
Equador: Rafael Correa – presidente desde 2007 (Alianza Pais)
Nicarágua: Daniel Ortega – presidente desde 2007 (Frente Sandinista de Libertação Nacional)
Paraguai: Fernando Lugo – presidente desde 2008 (Partido Democrata Cristão)
Venezuela: Hugo Chavez – presidente desde 1999 (Partido Socialista Unido)

Ver:

ÁGUIA AZUL SOBRE O SUL

Rima e é verdade.

O texto é de Guillaume Tricot, as fotografias de Marie Barlois. Au-delà du Tage foi publicado na revista de bordo da companhia aérea Aigle Azur.

Transcrevamos, para sermos mais precisos:

Suivons les méandres du floeuve Guadiana, qui veine le bas Alentejo du nord au sud. Sa vallée offre des panoramas uniques, tantôt déserts, tantôt habités, comme la crête où culmine la gracieuse Mértola, joyau fondée par les Maures. É uma jóia, sim senhor, mas não foi fundada por mouros...
.
A Moura, arpenter les rues de l'ancien quartier maure, la Mouraria, avec ses grosses cheminées ajourées, avant de visiter ses musées.

MOURA
Horta de Torrejais
Bâtie sur les vestiges d'une ferme familiale, un espace à l'architecture épurée ouvert sur la campagne vallonnée. Mille fleurs et oliveirs, un ruisseau où la faune vient s'abreuver, des hôtes attentionnés et raffinés: un enchantement. Les gourmands seriont comblés par le déliciex petit-déjeuner (à partir de 80 euros). A Horta de Torrejais justificou mesmo uma caixa, com texto mais extenso, que é um excelente cartão de apresentação para a Catarina e para o Luís.

Restaurante O Molho
Omelette aux pointes d'asperges, poêlée de champignons sauvages. Tout simplement bon.
.
Restaurante Fronteiro-Mor
Ragoût de porc noir et service très amical...

Lagar de Varas do Fojo
Une exposition sur les techniques traditionnelles de production d'huile d'olive. Avant de déguster la délicate huile d'olive bio de la coopérative de Moura et Barrancos.


MÉRTOLA
Casa Visconde dos Bouzões
Idéalement situé dans la vieille ville, à deux pas du château, des chambres joliment décorées de meubles anciens. Préférez la chambre double à l'étage. (à partir de 50 euros)

Restaurante Migas
Cuisine familiale, très bonnes grillades de viandes de l'Alentejo, et ragoût de lamproie et d'anguilles.

Há uma fotografia da Mouraria de Moura, mais duas da Horta de Torrejais, uma do Fronteiro-Mor e mais outra vista geral de Mértola.

A Aigle Azur é uma companhia aérea francesa, fundada em 1946. Especializou-se, e mantem-se, nos mercados do sul da Europa e do norte de África. Tem, desde há pouco, Faro como novo destino. Vejam-se informações completas no site http://www.aigle-azur.fr.

NB: Não tive, enquanto vereador da Câmara Municipal de Moura, participação na selecção dos locais visitados/aconselhados pelos autores da reportagem, da qual não me foi dado conhecimento prévio. É, contudo, significativo ver como este olhar a partir do exterior é bem mais entusiástico e animador do que com frequência ouço nas ruas do nosso concelho...

segunda-feira, 25 de maio de 2009

MAR DO MEIO

Durante muitos séculos a história do mar do meio foi a história do mundo. O mar era o centro do mundo. O mar tinha barcos e homens. E, dizem, monstros e sereias. Dos monstros e das sereias há muito que ninguém ouve falar. Os homens tomaram conta do mar e das suas margens. Uma densa trama de caminhos em breve percorreu as águas e a terra firme. Depois o comércio deu um sopro de vida aos caminhos do mar. Metais e pedras ornamentais, as madeiras, os tecidos luxuosos e os perfumes do Levante fizeram com que aldeias outrora incógnitas prosperassem e passassem a ser cidades. Naquela baía antes deserta nasceu Tânger; no estuário de pescadores onde só havia pescadores ergueu-se o esplendor de Alexandria. As cidades tornaram-se metrópoles populosas e cada vez mais ricas. Mármores e pórfiros e dioritos criaram a eternidade das formas e aos poucos encheram as praças urbanas. Por toda a parte se viam as imagens dos deuses e de homens semelhantes a deuses. Durante muitos séculos, uns e outros foram celebrados com magnificência. Em honra dos deuses e dos homens se construiram templos e se ergueram muralhas, igrejas, mesquitas e sinagogas.
.
Isso foi há muito tempo. O centro do mundo afastou-se, entretanto, do mar do meio. Procuramos as cidades e não as encontramos. Perdemo-nos, porque os seus nomes mudaram. Somos conduzidos, sem bússola nem agulha de marear, de sítio em sítio, à procura de uma história e de um tempo que já não existem. Não sabemos que terra é esta. Nunca estivemos neste porto. É-nos estranho o perfil abrupto da ilha onde acabamos de chegar. Tacteamos mapas antigos, procuramos abrigo junto de Avieno e de al-Idrisi. Os caminhos e as cidades de outrora permanecem, ainda assim, solitários e secretos.
.
Mas a vida continua a passar por ali. A vida vai além, ao colo do rapazito que brinca numa rua perdida da cidade na margem sul do mar do meio. Está nos gestos lentos do homem que fuma narguilé na noite do Cairo. Acompanha o passo do homem que, absorto, percorre as arcadas de Florença. A vida passa mansamente por entre o bulício dos mercados, entra no nevoeiro denso dos banhos, corre nas vozes que ouvimos nos terraços de Halfaouine e de Mar Girgis. Nas margens do mar do meio o ritmo da vida é tão antigo como o mar ele mesmo. As quatro estações do ano conhecem ainda uma sequência sem alterações. Os hábitos de vida são ainda quase iguais, mas a cada ano que passa talvez um pouco menos. A carroça feérica de flores de papel em muitas cores que, à força de mula, dá voltas e mais voltas à esquina da rua Umar al-Mukhtar, em Tripoli, é a mesma, a mesmíssima, em que, há muitos anos, fui à romaria lá para os lados do Malagon, em Paymogo. As tradições morrem com lentidão mas de vez, e já ninguém se lembra que o califa al-Mustansir foi fatalmente colhido ao lidar um touro, numa noite cálida de Marrakech… As placas tectónicas separam-se, o sul e o norte também.
.
O Mediterrâneo é um mar de gente e uma babel de ruas. O mar do meio é uma babel de casas e um dédalo de vozes. As cidades em volta do mar, cheias de vozes e de gente, são brancas. O branco das paredes reflecte-se nos lenços e na timidez das mulheres. São cidades discretas e, às vezes, mesmo um pouco tristes. Em muitas delas não há turistas, porque os turistas não gostam de cidades belas mas um pouco tristes e porque os turistas querem quase sempre um pouco mais que a bruma que envolve as baías e os portos do mar ao entardecer. As cidades do Mediterrâneo estão entregues a si, à sua história, aos milhares de anos sedimentados no subsolo, aos muros que se esfarelam. São belas assim, de ar colonial já sem colonos, com as paredes brancas e as persianas azuis, com o seu ar um pouco triste e com a bruma e as ruas que assomam ao longo dos portos.

.
As cidades do mar são feitas de ruas estreitas e misteriosas, sem luz, de casas sem idade e onde o tempo não corre. Quando nelas entramos resistimos a voltar para o mundo, talvez por causa das fontes que correm todo o tempo no centro dos pátios das casas, com a água a esgueirar-se por entre azulejos azuis. Talvez por causa da quietude e do silêncio. Talvez por causa do perfume da pele das mulheres do mar do meio. Às casas das cidades só chegam os sons distantes do mundo. Mas os pátios, os das casas, os das mesquitas e os dos mercados, são, afinal, o centro do mundo e é à volta deles que belas mulheres rodopiam, envoltas em túnicas e em perfumes. As mulheres dos pátios de Halfaouine e de Chefchaouen rescendem a rosas. E a lírios, também.

.
Sem o saberem, os arredores das cidades guardam memórias de um mundo antigo. Ouçamos a cadência sempre igual dos alcatruzes das noras, onde “a água cantava / a sua copla plebeia”. Deixemo-nos ir pelos jardins do mar do meio, aqueles onde a rama das oliveiras se mistura com o aroma das laranjeiras, dos damasqueiros e das romãzeiras. Os jardins estão fechados nos seus muros e são percorridos por fios de água bem ordenados. Os hibiscos e a sombra das figueiras fazem parte desses labirintos com que se pretendia imitar os jardins do Paraíso, que tinham rios e aves que nunca ninguém viu. Fora das cidades do mar está esse mundo de calor e de sol e de sombra, de calor e de luz e de sombra.
.
O Mediterrâneo acaba onde deixamos de ver as oliveiras e as figueiras. É uma verdade antiga e bem conhecida. Os caminhos do mar estenderam-se para além dessa verdade. Os caminhos seguiram os passos da cegonha preta e dos cucos. Tomaram o exemplo da incansável gaivina ártica. Levados pelo harmattan, o terrível vento do deserto, foram para lá do grande mar de areia e chegaram até ao coração negro da Terra, onde a pele do mar do meio escurece pouco a pouco. Mais para sul, já não há muros brancos do catálogo típico das ruas do mar do meio. São cidades onde não chegaram os ecos do mundo antigo e não há arqueologia para ver, nem monumentos de um passado remoto para visitar. Entre as águas do Níger e a terra de tom pardacento ficam os ecos do Mediterrâneo, que um dia chegaram até Gao e até Tombuctu. Por lá ficaram presos aos muros das mesquitas e à placidez dos que não cuidam do passado porque também lhes foge o futuro.

.
As maravilhas de Tombuctu pereceram por entre o peso da decadência, e as cúpulas douradas de que falavam os viajantes parecem um delírio saído das raízes do sonho. Os relatos dos aventureiros são a nossa máquina do tempo. Regressemos, então, à orla do mar do meio. Admiremos, por debaixo dos séculos, as metrópoles que outrora foram e que não voltarão a ser. A melhor altura para retroceder na História é nesses fins de dia em que os turistas já partiram e apenas o vento se ouve nos canaviais. É assim em Leptis Magna, onde o porto se esconde lá longe e onde o sítio de entrada dos navios é agora uma praia na qual mal se percebe a barra. Corramos até lá, sob um sol furioso, e onde apenas as cobras, que cruzam ao longe o caminho, dão sinal de vida. É assim em Tipasa, onde o Mediterrâneo já bate nos muros das casas. Desaparecido o cais, o mar venceu a terra e começa a haver cada vez mais água e cada vez menos cidade. Passemos a basílica de Alexandre, até ao sítio onde Camus contemplava o Jebel Chenoua. Paremos aí, porque aquilo que a ele o inspirava é para nós invisível. É assim em Tróia, por entre rio e mar, no meio daquilo que resta da cidade de outrora. Detenhamo-nos junto ao Atlântico e tentemos descortinar uma parte do que desapareceu e que está algures sob as ondas. É assim em Cartago, onde a cidade antiga já quase desapareceu no meio dos quarteirões de vivendas espaventosas. A memória de uma Roma a sul já quase não passa de memória e lixeiras suburbanas ocultam os vestígios dos primeiros tempos da Cristandade.

.
É assim em todas as cidades esquecidas do mar do meio. O esplendor da decadência é mais visível onde Roma passou. A decadência do poder é sempre mais esplendorosa do que qualquer outra. Amontoam-se por toda a parte, com a ordem do caos, milhares de colunas e capitéis, frisos, entablamentos, mármores, calcários. Não há museu onde caibam, não há museu que os queira. Os arqueólogos escolhem as matérias com a melancolia de quem percorre uma ementa demasiado longa. O resto fica de fora, e as cidades esquecidas mergulham todos os dias um pouco mais no olvido. Para lá dos teatros, dos hipódromos e da magnificência do poder estão vidas esquecidas que nunca desvendaremos e que nunca ninguém conhecerá ou quererá conhecer.
.
A história do Mediterrâneo ainda está a ser escrita e há-de ser lida um dia.











O texto é do livrinho que foi apresentado na passada semana, durante o Festival Islâmico. As fotografias são das duas capas (Argel, à esquerda; Marrakech, à direita). Mar do meio é uma edição da Câmara Municipal de Mértola.

200

E assim se chega ao texto 200.


É sempre curioso verificar o que causa mais e menos interesse às pessoas. Sobretudo aquilo que é olimpicamente ignorado. Com zero comentários, e em tempos recentes, temos:


As notícias de ontem sobre o Festival de Cannes

22.05.2009 - Última bobine, sobre João Bénard da Costa e o filme Beijos roubados.

17.05.2009 - Pintura e luta de classes: Courbet vs. Millet.

13.05.2009 - Saudi Aramco World, sobre a revista com o mesmo nome.

11.05.2009 - Memória cinéfila II, ou como o peito de Victor Mature era maior que o de Hedy Lamarr.

10.05.2009 - Na Tunísia, sobre a pintura de August Macke.

05.05.2009 - Haiti, sobre a fotografia de Cristina Garcia Rodero.

04.05.2009 - Cecília Meireles, sobre um poema desta autora e sobre um texto um pouco triste.

02.05.2009 - Et tatata... Et tatati... sobre Jacques Tati.

01.05.2009 - Os carteiristas do Expresso, sobre um texto publicado naquele semanário.

01.05.2009 - Memória cinéfila, sobre um filme chamado The last run.

30.04.2009 - L'agneau mystique, sobre o retábulo pintado pelos irmãos Van Eyck.

28.04.2009 - Teu corpo claro e perfeito, poema de Manuel Bandeira, com fotografia de man Ray.

26.04.2009 - Paese d'o sole, a central da Amareleja e a voz de Franco Corelli.


Facto curioso, o cinema e, logo a seguir, a pintura são os temas menos comentados.


Outros factos: em tempos recentes o blogue tem uma média de 150/160 page views por dia; o blogue "anda" por dez países, mas é sobretudo lusitano (95% dos visitantes).


Continuaremos.

JOÃO SALAVIZA

E mais estas breves notas sobre o laureado João Salaviza:

1. O filme Arena tem a participação da RTP. Fico com a secreta, e quiçá inútil, esperança que transmitam a curta-metragem um dia destes, a seguir ao telejornal. Recuperando uma tradição desaparecida na televisão pública: a da cultura em horário nobre. Os mais novos não acreditarão mas há muitos anos, em horário nobre, havia um programa sobre poesia (!). O responsável por aquela meia hora de leituras e comentários sobre Imagens da Poesia Europeia chamava-se David Mourão-Ferreira (1927-1996). E, oh! espanto, o programa até tinha lugar nos tempos do fascismo!

2. Hoje de manhã a Antena 1 anunciava a que João Salaviza é o autor dos tempos de antena do Bloco de Esquerda. Afinal não é bem assim... Cito: "João Salaviza montou "Fantasbloco", uma série de três episódios que será emitida nos tempos de antena do Bloco de Esquerda na RTP2 e que é um trabalho de uma equipa de jovens profissionais do cinema: Manuel Pureza (realização), Bruno Cabral, João Salaviza e Vasco Viana, director de fotografia do filme Arena." Verei os tempos de antena, em todo o caso.

domingo, 24 de maio de 2009

PALME D'OR

O realizador é um jovem de 25 anos chamado João Salaviza. Acaba de cometer a invulgar façanha de ganhar a Palma de Ouro em Cannes, com a sua curta-metragem Arena. Não é preciso dizer mais nada, porque há notícias que quase dispensam acrescentos.



Lista completa de laureados em http://www.festival-cannes.com

JARDINS DO MUNDO

Anda, apressa-te! Não há mais nada além do estipulado:
a taça e a minha bela lua cheia.
Não sejas preguiçoso, anda ver
a névoa que cobre o jardim e o vinho:

é que o jardim está oculto até que venhas
e só então ficará a descoberto.

Dá-me lírios, lírios

E rosas também.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também,

Crisântemos, dálias,

Violetas, e os girassóis

Acima de todas as flores...

.

Deita-me as mancheias,

Por cima da alma,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

.

Meu coração chora

Na sombra dos parques,

Não tem quem o console

Verdadeiramente,

Excepto a própria sombra dos parques

Entrando-me na alma,

Através do pranto.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

.

O primeiro poema é de Ibn Bassam (poeta de Santarém - século XI). A tradução é de António Borges Coelho e faz parte da obra Portugal na Espanha Árabe, recentemente reeditada. O segundo poema - é apenas um excerto - intitula-se Acordar e foi escrito por Fernando Pessoa/Álvaro de Campos. No meio ficam as fotografias de Robert Mapplethorpe.

EVIDENTEMENTE...

Era fatal como o destino.

Na impossibilidade de ter ontem visto a tv (Festival Islâmico oblige) fui hoje ao site da RTP. O que está nos destaques vídeo? Crianças com problemas neurológicos, Nuno Melo e Miguel Portas. A gigantesca manifestação de ontem da CDU? Pfff, 85.000 gajos na rua. O que é que isso interessa?

Vídeos sobre a manif e sobre Portas no Festival de Mértola (será propensão genética para feiras?)? Decerto. 1 min. e 41 seg. para a manif, onde falaram mais alto as histórias pessoais (não há uma única palavra de Ilda Figueiredo nem de Jerónimo de Sousa, que mal vemos na peça). Portas em Mértola? 1 min. e 35 seg. de reportagem , dominada pelas declarações do candidato. Se isto não é tratamento justo e equilibrado da informação façam favor de me explicar o que quer dizer "tratamento justo e equilibrado da informação"...

sexta-feira, 22 de maio de 2009

BÉNARD DA COSTA POR ELE MESMO

Excerto de uma entrevista feita em 10 de Agosto de 2001, por Kathleen Gomes (Público).
.
Como ironiza numa das crónicas de “Os Filmes da Minha Vida”, só fala de filmes “do tempo da Maria Cachucha”. Por isso, houve quem se espantasse quando na Cinemateca se fez, este ano, o ciclo “Revelações dos Anos 90”.
.
Aí há um grande mal-entendido. Quando falo disso é por reacção a um clima cada vez maior, que é a rejeição de um passado. Como a pessoa que, quando eu digo que vi um filme óptimo, me pergunta: “Mas onde está esse filme?” “Passou na Cinemateca. É um filme de 1940.” “Que horror, filmes antigos. É a preto e branco? Não vou ver.” Isso não acontece em nenhuma outra arte. Não me vai dizer que não entra no Louvre e só vai ao museu de arte contemporânea... “Pintura antiga? Estátuas egípcias do século V a.C.? Com a lei da frontalidade, ainda por cima não sabiam olhar em frente? Isso nem vou ver, não me interessa, que coisa tão mal feita, tão tosca.” Ou: “Bach, século XVIII, música para igrejas, evangelhos e missas, por amor de Deus…” Ninguém considera Bach muito antigo. Ou Dante, Homero. Porque é que no cinema se cria uma mentalidade desse género, ligado às modas: “Um filme com mais de cinco ou dez anos já não interessa, isso é do tempo da Maria Cachucha”? Isso é que é a aberração, não tenho nada contra o que se faz hoje, o bom que se continua a fazer. Há um filme deste ano de que gosto muito – por acaso, este ano tem sido mau —, que é “O Protegido”, do Shyamalan.
.
Frases sábias e a reter.

ÚLTIMA BOBINE

O falecimento de João Bénard da Costa (1932-2009) fez-me recordar as tardes gastas a ver filmes na Cinemateca e na Fundação Gulbenkian. Fazia-o, bicho do mato, sempre sozinho, gastando os intervalos a ler os manuais de Paleografia do Prof. Borges Nunes.

Fui fiel cliente dos ciclos de cinema americano - devo a um deles a oportunidade rara de ter visto O rio sagrado (1951), de Jean Renoir (1894-1979), um dos mais belos filmes do mundo - e de um outro sobre a obra completa de François Truffaut (1932-1984). Curiosamente, nos tempos de juventude, a obra de Truffaut parecia-me bem mais importante que hoje.

Nesses ciclos, João Bénard da Costa fazia sempre uma breve e inteligente apresentação do filme que iríamos ver. Eram palavras relevantes e devo-lhe, sem a pieguice que os falecimentos sempre causam, importantes ensinamentos sobre o cinema. Confesso que a plateia, em larga maioria rapaziada das faculdades, fazia sempre uma maldade ao Dr. Bénard da Costa. Quando ele abandonava o palco do Grande Auditório a sala ficava num silêncio sepulcral. Nem umas palminhas, nada. Em contrapartida, quando o contínuo da Fundação Gulbenkian ía recolher o suporte do microfone a sala quase vinha abaixo em aplausos. Uma verdadeira ovação que, a partida de determinada altura, passou a fazer parte da praxe das sessões...


Beijos roubados é um filme de François Truffaut, de 1968. Não me recordo o que me terá levado a vê-lo, numa noite de Primavera de 1978 ou 1979, no Cine-Estúdio Lido, na Amadora. Nessa altura, os cinemas de subúrbio passavam esse género de filmes. Coisa impensável nos nossos dias.

Fiquei apaixonado pelo filme, pela saga de Antoine Doinel, que fui revendo ao longo dos anos, e, sobretudo pelo nostálgico começo do filme.


Que reste t'il de nos amours é uma criação imortal de Charles Trenet (1913-2001). Data de 1942. Mas não parece.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A ESQUERDA, PÁ!

A esquerda, pá!

Preocupados com o passado, o presente e o futuro da agricultura, reuniram‑se num colóquio em Mértola Cláudio Torres (apoiante do Bloco de Esquerda e da CDU), Constantino Piçarra (apoiante só do Bloco de Esquerda) e um ex-ministro da Agricultura, considerado próximo só do PCP. O encontro foi anunciado há semanas em Castro Verde por Fernando Rosas, candidato bloquista à presidência, mas na realidade foi organizado pelo Campo Arqueológico de Mértola, dirigido por Cláudio Torres, mandatário nacional de Rosas. Ou seja, o Bloco Agrícola de Mértola anda a realizar, empenhada­mente, iniciativas no domínio da arqueologia de esquerda. Que escrevo eu? Há qualquer coisa que não soa bem aqui. Re-escrevamos: o Campo Arqueológico de Esquerda promoveu, no passado dia 4, e em conjunto com o Bloco de Mértola, um colóquio sobre agricultura. Não, bolas, também não foi assim. Quem promoveu o encontro foi o Bloco Arqueológico de Mértola em conjunto com o Campo de Esquerda. Também não. Acho que me enganei outra vez... O colóquio foi uma iniciativa da Esquerda Arqueológica no Campo com a colaboração de Mértola em Bloco. Se calhar também não foi exactamente isso. Vamos então tentar de novo. Realizou-se recentemente um encontro promovido pelo Bloco do Campo Agrícola em conjunto com alguns elementos da Esquerda Arqueológica. Não, caramba, enganei-me outra vez. Até parece mentira! Vamos à última tentativa: a Agricultura Arqueológica da Esquerda conspirou recentemente com membros do Campo de Mértola. Bem, desisto. Fiquemos por aqui.

No fundo, acho que toda a gente percebeu. Foi uma iniciativa gira, pá. Isso é que interessa. Foi assim uma coisa de esquerda, pá. Da esquerda caviar mais da esquerda tractorista. Da esquerda folclórica e da esquerda des­con­traída. Da esquerda de camisa aos quadrados à esquerda de boina gue­varista. Da esquerda mais ou menos animada à esquerda mais ou menos coerente. No fundo não interessa muito se foi o Bloco de Mértola, a Arqueologia Agrícola ou o Campo de Esquerda quem organizou a iniciativa. No fundo, o importante é a esquerda. A esquerda, pá.
.
Este texto foi publicado em Novembro de 2000, nas páginas do Diário do Alentejo. Em tom um pouco chocarreiro protestava então contra aquilo que considerava, e considero, ser uma desnecessária promiscuidade entre um partido político (o Bloco ou qualquer outro, para o caso é indiferente) e a esfera de acção de uma instituição de investigação científica. Sendo eu membro do Campo Arqueológico de Mértola não podia deixar de me expressar em conformidade com aquilo que penso. Por questões de princípio, de coerência e de frontalidade.
.
Sem grande surpresa, admito que sem surpresa, a cena repete-se. Agora com as roupagens de uma iniciativa cultural, o lançamento do livro Périplo, de Miguel Portas e Camilo Azevedo. A iniciativa aparece na agenda do website do Bloco de Esquerda (http://www.esquerda.net/index.php?option=com_content&task=blogcategory&id=29&Itemid=124), sob o pouco inocente título "Miguel Portas participa no Festival Islâmico de Mértola". O link seguinte (http://www.esquerda.net/media/festival_islamico.pdf) é um pouco mais concreto, com a apresentação do programa de actividades do candidato no concelho de Mértola. Deixando de parte o tom "espontâneo", no sentido tauromáquico da expressão, da participação de Miguel Portas no Festival, faço questão em me demarcar, enquanto investigador e membro da Direcção do Campo Arqueológico de Mértola, desta e doutras iniciativas do mesmo género, previstas ou a programar no CAM.
.
Não vejo, decorridos estes nove anos, razões para alterar os meus princípios nem o dogma da frontalidade. Não presumo ter sempre razão. Desta vez tenho a certeza de ter razão.
.
Vai haver reportagens na tv e muitos destaques e coisas assim. Alguém duvida?

terça-feira, 19 de maio de 2009

DIA DOS MUSEUS

Passou ontem. Tornou-se, desde há uns anos, uma data obrigatória no calendário da cultura. Em Mértola houve visita nocturna ao Museu Paleocristão.
.
É um sítio a que me ligam boas memórias e um espaço museológico pelo qual tenho particular predilecção. A história conta-se em poucas linhas: quando cheguei a Mértola, no Verão de 1991, o dinheiro acabara-se, a obra estava a meio, as facturas somavam-se e não havia fim à vista. Pormenor caricato, o espaço interior do carcaça em construção era o local preferido da vizinhança para estacionar os automóveis, que se arrumavam, ordeiramente ao fundo do edifício. Foram dois anos negros. Passei-os entre o retomar do projecto (da autoria de Luís Bruno Soares), o financiamento da obra (que chegou a dar direito a uma reunião com o então Secretário de Estado Nunes Liberato) e muitas noites perdidas. Ao mesmo tempo fui organizando o catálogo do museu - velha mania, sempre gostei desse prestar de contas que são os catálogos das exposições - e preparando o seu financiamento. No meio houve de tudo um pouco, e as batalhas em torno da cor dos painéis foram épicas, e foi das poucas vezes em que vi o Cláudio Torres ceder.
.
Em 14 de Novembro de 1993 inaugurava-se o Museu Paleocristão. Um certo fim de linha para uma bela construção de meados ou da segunda metade do século V, também utilizada ao longo dos séculos como espaço funerário. Há muitas opções de que gosto: o tom rosa palácio e vermelho forte dos interiores, os mármores nas fenestrações, a facilidade da leitura das estruturas arqueológicas e a sua ligação ao edifício novo.
.
O Museu Paleocristão faz parte do Museu de Mértola. "Envelheceu" bem e continua um bonito espaço.

Página web do Museu de Mértola (projecto que apresentei à Rede Portuguesa de Museus mas que já não pude desenvolver): http://museus.cm-mertola.pt/

Na página do ateliê de arquitectura que concebeu este projecto não há qualquer referência ao Museu Paleocristão. Seguramente, para eles não foi uma coisa assim muito importante. Para o Campo Arqueológico e para mim foi.

http://www.brunosoaresarquitectos.pt/pagina/

segunda-feira, 18 de maio de 2009

DIAS CONTRADITÓRIOS

Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,

Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...




O poema é do brasileiro Mário Quintana (1906-1994), as imagens são um excerto do filme Morangos Silvestres de Ingmar Bergman (1918-2007). A poesia, quase sempre solar e directa, de Mário Quintana foi uma descoberta recente para mim. Já o filme de Bergman é uma velha obsessão, pela sua crua perspectiva do tempo que corre. E por estar pontuado de um onirismo que se mistura sempre com uma dolorosa revisão dos dias idos.
Há dias assim contraditórios, entre o Sol e a Lua. Ou entre a claridade da vida e a penumbra do tempo que passa.

domingo, 17 de maio de 2009

VIVA O ATLÉTICO! (OUTRA VEZ)

Há uns dias foi o campeonato, hoje foi a Taça. Em Beja e contra o Desportivo. O Atlético está de parabéns. A nossa cidade também.

No dia 23 vou fazer uma pausa no Festival Islâmico para "voar" até Moura e estar presente na Gala do MAC. Vivó Atlético!

sábado, 16 de maio de 2009

FOLHA DE SÃO PAULO

Nunca comprei a Folha de S. Paulo. Contudo, a excepcionalidade deste anúncio já com uns anitos (data de 1988) é bem digno de registo e de entusiasmo. E é prova como, com muito pouco dinheiro, se pode fazer um trabalho publicitário de génio.

O anúncio, criado por Washington Olivetto (n. 1952) e por Nizan Guanaes (n. 1958), ganhou o Cannes Lions (é o grande evento da publicidade televisiva).

O site do evento é http://www.canneslions.com/. O festival deste ano tem lugar entre 21 e 27 de Junho.

UM POUCO DE FUTILIDADE

Durante muitos anos tive terríveis complexos em relação à questão das gravatas, uma coisa "pouco de esquerda, burguesa etc.". Com os anos essas coisas passam... A verdade é que até gosto de gravatas de riscas - as da Emidio Tucci não são nada más - e, sobretudo, de laços. Facto talvez contaditório em quem se está nas tintas para a roupas e a moda.

Em todo o caso, e talvez por em miúdo usar laço, a mania ficou. Lá em casa ninguém acha graça à ideia, menos ainda porque vêm do estrangeiro, não são baratos e são "mais um maluqueira". Comecei a usar os laços porque são mais práticos e discretos que as gravatas. Sempre tive um problema em fazer o nó. Em teoria é simples. É como fazer um nó de sapato no pescoço. Isso é a teoria. Fica sempre torto. Um especialista na matéria disse-me que um laço para ter personalidade tem de ficar um pouco torto, não pode ser simétrico. Conclusão fácil: os meus laços têm muitíssima personalidade. Passei a encomendá-los na versão "pre-tied", que é muito mais prática.


Outro problema é o tamanho. Os de 2 1/2 polegadas são um pouco grandes de mais, os de 1 3/4 ligeiramente pequenos. Os mais apropriados são os "butterfly" de 2 polegadas, mas nem todas as casas os fabricam.


Um périplo pelos sites (todos americanos, oh não meu Deus! mais imperialismo...) que abaixo se indicam dão ideia da gama de produtos à venda, por preços que oscilam entre os 30 e os 60 dólares. O que quer dizer que não é coisa para todos os dias.










De cima para baixo:
Laço Georgetown da Bowtie Club.
O crooner alemão dos anos 70 Freddy Breck com um daqueles laços tipo orelhas-de-elefante.
Uma gravata de riscas Emidio Tucci.
Gravatas de riscas Hermès que acho lindas, mas que a minha amiga Isabel olhou com um ar oblíquo e comentou "acho-as um bocado amaricadas".

O site da casa Hermès, beaucoup plus chic, é http://www.hermes.com

quinta-feira, 14 de maio de 2009

GHADAMES

Imagem Minha


Ficas a ler comprazida diante das rosas
silhueta que vislumbrei compus e reanimei.
Tinhas o perfil marcado cruamente pela luz,
as mãos claras no colo, os cabelos despojados
do brilho das cabeleiras soltas, mas juvenis
e sacudidos no início da tarde com alegria.
As páginas balouçavam do mesmo modo que as rosas
porque ao começar a tarde nos dias de Verão
brisas e vapores estendem-se desde o mar
até às margens floridas. No teu banco
adornado por festões de rosas trepadeiras
afastas os olhos do livro não absorta
mas para sempre atraída por inúmeras imagens.



Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Poemas Revistos"





Ghadames fica na Líbia, 470 km. a sudoeste de Tripoli. É conhecida como A pérola do deserto. Acho a designação pirosa, a lembrar praias que foram bonitas e agora são assim parecidas a um arrabalde da Reboleira. Em Ghadames há ruas de sombra e de luz coada. A Ghadames vai-se. Mas há o risco de não se regressar.
.
Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007) foi/é uma grande poetisa portuguesa.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

MAR DO MEIO

Mar do meio é o título do livro que irei lançar no dia 22 (6ª feira), pelas 18.30 (Centro de Estudos Medievais e Islâmicos), no âmbito do 5º Festival Islâmico de Mértola. O texto é bilingue (português e árabe), contando a publicação com 32 fotografias feitas em 12 países da orla mediterrânica.

Mar do meio é uma publicação da Câmara Municipal de Mértola, entidade que, desde 2001, organiza o Festival.

O programa do Festival Islâmico de Mértola pode ser consultado aqui.

As duas fotografias de cima foram feitas em Argel, no Outono de 2004. A de baixo em Mértola, em 2000.

Nas margens do mar do meio o ritmo da vida é tão antigo como o mar ele mesmo. As quatro estações do ano conhecem ainda uma sequência sem alterações. Os hábitos de vida são ainda quase iguais, mas a cada ano que passa talvez um pouco menos. A carroça feérica de flores de papel em muitas cores que, à força de mula, dá voltas e mais voltas à esquina da rua Umar al-Mukhtar, em Tripoli, é a mesma, a mesmíssima, em que, há muitos anos, fui à romaria lá para os lados do Malagon, em Paymogo. As tradições morrem com lentidão mas de vez, e já ninguém se lembra que o califa al-Mustansir foi fatalmente colhido ao lidar um touro, numa noite cálida de Marrakech… As placas tectónicas separam-se, o sul e o norte também.

SAUDI ARAMCO WORLD

E agora, um pouco mais para sul e um pouco mais para leste.
.
Falo-vos da revista da companhia petrolífera SAUDI ARAMCO. Chama-se Saudi Aramco World e tem edição online - http://www.saudiaramcoworld.com -, embora os mais tradicionais, como é o caso do autor do blogue, prefiram a versão impressa. O envio é feito gratuitamente (sim, ainda há coisas dessas!).
.
O que é que se pode encontrar Saudi Aramco World? Notícias do mundo e da cultura islâmicas em todo o planeta, com destaque para o que é produzido a partir dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, artigos sobre geografia, literatura, moda, gastronomia, história, cinema etc. etc. Quase sempre com textos de grande qualidade e desenhos e fotografias do mesmo nível. E ainda com referências aos eventos culturais que ocorrem em todo o planeta. Que mais se pode pedir, ainda por cima sem pagar um tostão?
.
Esta revista é uma invenção dos imperialistas? Pois é, mas que lhe havemos de fazer?
Capa de um número da revista.

Aspecto do site.

terça-feira, 12 de maio de 2009

PHAROS & PHARILLON

Ainda o Mediterrâneo, ainda o Sul.


Foi um dos livros mais fascinantes que me recomendaram (e foi uma jornalista, cujo primeiro nome é Alexandra). Esta evocação de Alexandria tem um pouco de tudo, e em diferentes segmentos: História, romance, a omnipresença da poesia de Kavafis. Tem humor e charme e está imensamente bem escrita. Começa assim:


"Antes de haver civilização no Egipto, ou de ter sido formado o delta do Nilo, todo o país para sul, até onde fica hoje o Cairo, jazia debaixo do mar. As margens deste mar eram um deserto de calcário. A linha da costa era geralmente suave, mas na ponta a noroeste sobressaía da massa principal um grande espigão. Tinha menos de uma milha de largura, e trinta milhas de comprimento. A sua base não fica longe de Bahig, e Alexandria está construída a meio caminho; a sua ponta é o cabo de Aboukir. De ambos os lados houve em tempos águas salgadas e profundas."


Que melhor começo que este, onde se explica em poucas palavras o porquê da existência de uma tal cidade? E onde se percebe o porquê da sua magnificência futura. Pharos & Pharillon foi escrito por E.M. Forster (1879-1970) em 1923, depois de ter completado a sua longa estadia na cidade egípcia. O livro está disponível em Portugal (edição da Cotovia) e custa 11 euros: http://www.wook.pt/





As fotografias são da dupla Rudolf Lehnert (austríaco, 1878-1954) e Ernst Landrock (suiço, 1878-1966). Trabalharam juntos até 1930 (Lehnert era o fotógrafo, Landrock o gestor). Lehnert foi depois viver para Tunis; Landrock permaneceu no Cairo até ao início da 2ª Guerra Mundial. A loja que os tornou célebres ainda existe. Fica no centro do Cairo, no 44 da Sharia Sherif. As reproduções são caras mas irresistíveis. Infelizmente, trabalharam pouco sobre Alexandria e as imagens que se mostram são uma pálida imagem do seu trabalho.

SUBITAMENTE, EM DENFERT-ROCHEREAU...

O percurso foi, durante anos, monotonamente o mesmo. Chegava a Denfert-Rochereau, metia-me na linha 6 do metro, trocava a meio do percurso pela 10 e, ao fim de uns 25 minutos estava em casa da Júlia, na Rue Balard.

Mas não daquela vez. Mal tinha acabado de sair do autocarro do aeroporto e já era interpelado por três ingleses. Estavam a pé, estavam completamente perdidos, não falavam uma de francês e estavam um pouco distantes do objectivo. Queriam ir às meninas ao Pigalle. Ainda hesitei, pensando que era melhor avisá-los que boa parte das meninas do Pigalle e da Place Blanche eram travestis. So they say... Achei, contudo, melhor não ir por aí. Disse-lhes rapidamente como ir, que bilhetes comprar etc. Nesse momento, um chama os outros dois de lado. Rápida conferência. E surge a proposta: ía com eles, orientava-os nos restaurantes e nos bares. Eles pagavam tudo. E, bem entendido, eu teria direito a uma miúda de borla! E podia escolher a meu gosto. Declinei, entre muitos agradecimentos, que eram simpáticos mas eu tinha de ir jantar com a minha irmã etc. etc. Olharam-me como se fosse anormal e entraram rapidamente na estação do metro. Os crentes vão pensar que foi castigo de Deus Nosso Senhor, mas os rapazes enfiaram, e a despeito do meu esbracejamento (que tomaram como despedida), a toda a velocidade para uma composição da linha B4 do RER, que vai para Saint-Rémy-lès-Chevreuse e não para a linha 4, em direcção à Porte de Clignancourt. Ou seja, foram para sul e não para norte, no combóio da linha de Sintra lá do sítio. Não consigo imaginar o que terão pensado, quando se viram a muitos quilómetros do ponto desejado, sem miúdas, nem copos, nem nada.

Fachada da fatídica estação.




Monumento à Defesa Nacional, em plena praça Denfert-Rochereau (14º bairro). O leão é uma referência a Pierre Marie Philippe Aristide Denfert-Rochereau (1823-1878), celebrizado na guerra franco-alemã de 1870 pela defesa que empreendeu da praça-forte de Belfort, na Alsácia. A tenacidade na resistência valeu-lhe o cognome de leão de Belfort.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

MEMÓRIA CINÉFILA - II

À saída da ante-estreia do filme Sansão e Dalila (1949) perguntaram ao humorista Groucho Marx se tinha gostado do filme. Que não, respondeu de forma abrupta. Os jornalistas estacaram e, quase a medo, perguntaram porquê. Malicioso, Groucho Marx sorriu e arrumou o problema de vez: "Well, there's just one problem. No picture can hold my interest where the leading man's tits are bigger than the leading lady's."


Aparentemente, o peito de Victor Mature (1913-1999) era grande mas o filme nem por isso... A protagonista era Hedy Lamarr (1913-2000) e o realizador Cecil B. de Mille (1881-1959). A fita até ganhou dois oscares mas, como sabemos, isso não quer dizer grande coisa.
.
Já agora, e a despeito das palavras de Groucho Marx, recorde-se que Hedy Lamarr tinha ficado célebre aos 20 anos pela sua participação no filme Ecstasy. E que foi, também, uma notável cientista.

LONGE

Tudo me diz que estou longe
Mas não é verdade!
O deserto sempre foi o lugar
Da minha infância!
Por isso, na direcção dos oásis
Saboreio o silêncio.
Procuro uma romã que supere
As palavras em doçura
E claridade. Não estou longe!
Esta poeira é envolvente!
.
De tão cru, o sol apaga lembranças
E germina esquecimentos.
O meu destino, são os incontáveis
Grãos que semeiam o Nada.
Este horizonte infinito de ilusões
O céu de areia de certas tardes.
.
Estou longe, dizem-me alguns
Sinais. Mas é tão perto, a minha
Casa. Poema futuro, luminosa
Oliveira. manhã desejada!

Tozeur 11.11.1996

Longe está no livro Cadernos de areia, do poeta e antropólogo Luís Maçarico (n. 1952). É uma obra que tem a data de 2008 mas que vai, e ainda bem, ser relançada no dia 21 de Maio, durante a jornada de abertura do 5º Festival Islâmico, em Mértola.



O autor da fotografia é Raymond Depardon (n. 1942), viajante infatigável. Algumas das suas deambulações levaram-no ao coração negro de África.

O programa do 5º Festival Islâmico está disponível na página web da Câmara Municipal de Mértola: www.cm-mertola.pt.

domingo, 10 de maio de 2009

NA TUNÍSIA

August Macke foi um pintor alemão que viveu entre 1887 e 1914. Tombou aos 27 anos, pouco depois do início da 1ª Guerra Mundial. Foi um dos membros mais destacados do grupo expressionista alemão Der Blaue Reiter.
.
Em 1914, pouco antes de falecer, viajou para a Tunísia, com Paul Klee e Louis Moiliet. O exotismo e a luz dos sítios foram marcantes para os trabalhos que ali produziu. Apesar do "expressionismo" de muitos dos seus trabalhos é bem evidente, nestas produções de August Macke, a influência do fauvismo.
.
A aguarela de baixo representa Kairouan. O panorama que Macke viu está um tanto alterado. Os camelos, junto à entrada da cidade e bem perto da grande mesquita, deram hoje lugar a um enorme parque de estacionamento. Não me recordo, de resto, de ter visto camelos em Kairouan. O essencial do espírito da cidade mantém-se intacto.


A obra de August Macke pode ser apreciada no mais completo site que lhe foi dedicado: http://www.augustmacke.org/