domingo, 4 de junho de 2017

AGORA QUE O MIGUEL NOS DEIXOU

Os anos passam e a ampulheta não pára. O Miguel iria cumprir 92 anos em agosto, mas já lá não chegou. O corpo cedeu, mas o espírito não, e até ao último momento manteve-se igual ao homem de sempre.

Agora que o Miguel Urbano Rodrigues nos deixou, irá fazer-nos ainda mais falta. Isso eu sei. Conheci-o já ele dobrar a casa dos 60, era um jovem de 23 ou 24, acabado de licenciar, e que ele tratava com amizade e proximidade (nunca permitiu o “você” ou, muito menos, “sr. Miguel” ou algo assim). Nos anos seguintes conheci-o bem melhor. E aprendi coisas. Sobre a importância da amizade, sobre a verticalidade, sobre a coerência. Foram aulas de imensa utilidade, daquelas que não têm preço. Contador de histórias imparável, devo-lhe tardes de convívio inesquecíveis, nas quais narrava acontecimentos que presenciara. Muitos deles estão nos seus dois livros de memórias  (“O tempo e o espaço em que vivi”). O terceiro volume não saiu, e nunca cheguei a perceber se o Miguel o chegou a escrever. São livros extraordinários. O Miguel escrevia com fluidez e invulgar elegância. Para isso contribuíam décadas de prática e uma cultura vasta, que se refletia na sua escrita. Há histórias pícaras, outras bem sérias.

Já com mais de 80 anos, mantinha uma energia notável. Uma vez disse-me “quando a idade passa, tudo muda, o nosso corpo muda, muitas vezes de forma surpreendente”. Não perguntei de que falava, pensando que um dia também terei oportunidade de isso saber. Aparecia de vez em quando (em Mértola, em Moura, em Serpa). Era então avisado pelo Carlos Lopes Pereira, amigo de longa data dos dois, “olha, o Miguel está aí e quer almoçar contigo”. Como na primavera do ano passado, num dos nossos últmos encontros. O almoço demorava horas, com um sempre acutilante Miguel a opinar, a inquirir, a comentar. Uma crónica é um espaço curto para tão grande mourense, mas gostaria de frisar que uma das coisas que mais me marcou – num país de “consensinhos”, de “saias rodadas” e de gente maviosa – foi, sempre, a frontalidade com o Miguel tratava os assuntos. Muitas vezes me disse “não estou de acordo contigo” e passava à explicação do seu ponto de vista, de forma direta e sem rodriguinhos. Aceitava, sempre, o contraditório, ainda que nele não se revisse. Foi outra das lições decisivas que me deu. Verdade se diga que a nossa mais radical divergência era sobre o vinho tinto Rioja, que ele abominava…

Não perdoava falhas na Língua Portuguesa, nem a ignorância travestida de saber. Uma vez, apareceu num almoço em que estávamos um arrivista que se “interessava pelo Mediterrâneo”. E que andava “a investigar”. Sentou-se à nossa mesa. Depois de muita conversa, às tantas disparou “ó Miguel Urbano, qual é a diferença entre árabes e berberes?”. O Miguel alinhavou, de mau humor, duas ou três frases sobre a questão. A partir daí, e sempre que nos encontrávamos, recordava “aquele moço é de uma ignorância enciclopédica”.

Militante do Partido Comunista Português desde 1964, foi editorialista de política internacional de “O Estado de São Paulo”, o maior periódico da América Latina. Foi deputado e presidente da Assembleia Municipal de Moura. Político, escritor e jornalista. Em todos os domínios deixou marca de qualidade, de competência e de coerência.

Agora que nos deixou, recordo o seu “num homem há muitos homens e numa vida muitas vidas”. À medida que amigos nos vão deixando – começo a entrar nessa idade – há uma parte das nossas vidas que fica para trás e há uma parte de nós que já não volta. Senti isso com duas ou três pessoas muito especiais. Senti isso, fundamente, quando recebi a SMS comunicando-me que o Miguel partira.


Os últimos dias não têm sido bons. O de hoje (29 de maio) também não vai ser.
Crónica publicada em "A Planície" de 1.6.2017.

1 comentário:

Anónimo disse...

O MUR nunca chegou a escrever o terceiro tomo da autobiografia. Disseram-me amigos comuns, e li algures nas suas próprias palavras - plenamente coincidentes com a informação dos amigos -
que considerava que o Álvaro Cunhal e o Vasco Gonçalves já tinham escrito o essencial sobre a Revolução de Abril, o período coberto pelo planeado terceiro volume, e que não acrescentaria nada de relevante (ou pertinente, ou proveitoso, ou qualquer coisa de semelhante, já não recordo exatamente).