quinta-feira, 31 de maio de 2018

CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DA CÂMARA DE MOURA


CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DA CÂMARA

Senhor Presidente,

Mantive um quase total silêncio durante os sete primeiros meses do seu mandato. Não me pareceu apropriado, depois de ter sido presidente da câmara até outubro de 2017, por-me a fazer comentários sobre a sua atuação ou sobre as opções do atual executivo.

Um ponto ficou por esclarecer e por ele esperei. O senhor por várias vezes aludiu às contas da Câmara Municipal de Moura. Que havia problemas com as contas e que havia questões menos claras nas Finanças do Município.O tempo passou. Entretanto, foram aprovadas as contas de 2017. Não li, em todo o relatório, um único reparo digno de registo. Um só que fosse. Posso dar dados relevantes quanto às contas do anterior mandato. Os pagamentos em atraso (faturas vencidas a mais de 90 dias)eram de 967.780 euros em 31.12.2013. E eram de 89.445 euros em final de setembro de 2017 quando, na prática, o nosso mandato terminou. Durante os meses seguintes (novembro e dezembro de 2017)esses pagamentos baixaram para 70.987 euros. Uma quebra de 20%.A qual vem de trás, até porque o diminuição da dívida foi, ao longo do nosso mandato, de cerca de 90%. Os números estão no relatório que o senhor presidente apresentou.De resto, o senhor presidente, que tanto enfatizou que tinha pago 19.000 euros em dois meses, sabe perfeitamente que uma câmara falida e sem dinheiro não podia ter feito esses pagamentos de um dia para o outro. É que o dinheiro não apareceu de um dia para o outro. Já lá estava, senhor presidente...

Também importa referir os seguintes dados: uma Câmara falida não pode pedir empréstimos à banca.Essa capacidade andou, nos anos de 2016 e de 2017, na casa dos 2.000.000 de euros. Isso também não se consegueem dois meses, como facilmente se entende.

Desmandos? Ilegalidades? As contas de 2017, que o senhor aprovou, foramauditadas por um Revisor Oficial de Contas. O qual escreve coisas como “o Município está em equilíbrio orçamental” (página 64 do relatório).Onde é que estão, afinal, as surpresas e onde é que faltei à verdade?

Vale a pena voltar a perguntar:
Qual foi a resposta da Inspeção-Geral de Finanças ao pedido de auditoria?

Onde está a auditoria que foi pedida à Inspeção-Geral de Finanças?
Quais são os resultados da auditoria ou quando se prevê que estejam disponíveis?
Quais foram as surpresas menos positivas? Onde é que isso está escrito,conforme o senhor prometeu que faria,no relatório e contas referente a 2017 e que, no essencial, diz respeito ao executivo que chefiei?

Não comento, para já, as questões do quotidiano autárquico mourense. Mas uma coisa tem de ficar clara: tem de haver, na política, decência, seriedade,elevação e compostura. E, volto a insistir, preparação. Lançar lama sobre a atuação de quem o antecedeu não corresponde a nenhuma destas exigências. Deixar suspeições é pior ainda. Pelo que aguardo, serenamente, uma explicação da sua parte.

Crónica publicada hoje, em "A Planície".

quarta-feira, 30 de maio de 2018

MUSEUS E BABACAS QUE FALAM SOBRE MUSEUS E ARQUEOLOGIA

A notícia completa está no site da Rádio Voz da Planície. O meu amigo João Neto tinha-me convidado a estar presente mas, hélas, os 40 anos do Campo Arqueológico levaram-me para Mértola...

O prémio da Associação Portuguesa de Museologia, atribuído à Rede de Museus do Baixo Alentejo deixa-me muito feliz. Reconheço na fotografia Lígia Rafael e Marisa Bacalhau, duas colegas por quem tenho grande estima. Mértola e Moura em destaque, uma vez mais!, nestes prémios. Dois museus aos quais tenho ligações muito próximas, tendo feito boa parte da minha carreira entre projetos desenvolvidos em duas terras que me são muito queridas.

Fico, nestas alturas, especialmente divertido ao pensar em certos babacas mourenses, que tanto peroraram sobre arqueologia e museus. E que tanto criticaram a política de reabilitação levada a cabo.

TEXTO Nº. 5000

E assim se chegou ao texto nº. 5000 aqui no blogue. Já lá vão quase 10 anos de atividade diária. Na verdade, já escrevi mais de 5000 textos. Alguns tiveram de ser eliminados, por razões de ordem técnica (vírus e coisas que tais). No essencial, importa sublinhar que estou cá. E que agradeço a atenção que me têm querido dispensar.

HYGIAPHONE

Era um clássico do atendimento, nos anos 70. "Fale aqui, diante do Hygiaphone". Hygia vem de higiene, e era uma maneira daqueles guichés, com lâminas de vidro, protegerem os funcionários dos perdigotos dos utentes. Nós falávamos, com voz de tenor, para nos ouvirem do outro lado. Ouviam, com a cabeça à banda e quase encostada ao hygiaphone. Dei de caras com esta relíquia ontem à tarde, no edifício onde trabalho.

MANAUS

Brasil, pensei instintivamente ao olhar a fotografia. Poderia até ser Portugal. Mas não, aquela larga fenestração é coisa dos trópicos. Melhor dizendo, do Equador. Tirei a fotografia da parede. No verso estava escrito Manaus, BNU. O bonito edifício de gaveto existiu, em tempos, numa cidade da Amazónia. Ficava ali a representação do Banco Nacional Ultramarino. A 1200 kms. do oceano, a 7000 kms. da cidade de origem. Há, em tudo isto, um certo toque Fitzcarraldo. Uma realidade improvável, fruto da tenacidade.


terça-feira, 29 de maio de 2018

O INTERIOR PRIMEIRO? PRIMEIRO QUE QUÊ?

Não vi o prós e contras. Já ouvi, demasiadas vezes, pungentes declarações de amor ao interior. O suficiente para não levar nada disto a sério. A experiência autárquica deixou-me a funda convicção que tudo isto - Unidade de Missão, Amor ao Interior, menos IRC, PNPOT (uma linda sigla) - se vai na espuma dos dias. O interior vai estar primeiro? Não me façam rir...

CRÓNICAS OLISIPONENSES - VII

A transformação é rápida (demasiado rápida?). Da janela do antigo Departamento de Resíduos Urbanos vejo, em frente, o futuro próximo. Para a esquerda está o novíssimo edifício da EDP. A Lisboa que se espalha pelo chão das salas é, contudo, outra. São vestígios e memórias de uma cidade desaparecida. Ressaltam, no trabalho dos jovens colegas que vim visitar os restos da Lisboa de dia 1 de novembro de 1755. Há madeira calcinada, ferros queimados, vidros derretidos. Depois da terra tremer e da água invadir a cidade, veio o fogo. Os traços da tragédia são impressionantes. Toco-lhes e tento imaginar o que se terá passado. E só me consigo lembrar de uma canção de Peggy Lee...

I remember when I was a very little girl, our house caught on fire
I'll never forget the look on my father's face as he gathered me up
in his arms and raced through the burning building out to the pavement
I stood there shivering in my pajamas and watched the whole world go up in flames
And when it was all over I said to myself, is that all there is to a fire



segunda-feira, 28 de maio de 2018

SÉRGIO RAMOS - A OESTE DE PECOS

Tinha prometido não voltar ao tema do futebol. Ora bem, isto não tem a ver com futebol. Isto é uma fera à solta. Ainda no passado sábado foi o que se viu: um jogador a oeste de Pecos...

DJAMBACÁ

Oito anos se passaram. Quase por acaso, é-me sugerido que use a fotografia, numa iniciativa a arrancar em breve, aqui em Lisboa. Verdadeiramente surpreendido, disse que sim. Veremos que se vai passar...

Há uma história por detrás desta imagem? Há. Em janeiro de 2010, acompanhei um amigo ao Bairro de Santa Luzia, em Bissau. Ia consultar uma djambacá. Pedi autorização para assistir e para fotografar. A feiticeira respondeu com um sorriso coquette e não me deixou começar sem ajeitar o lenço. A sessão foi prolongada, sempre em crioulo e pontuada com os discretos clics da M6. Revelei os rolos em Portugal. Ampliei esta fotografia. Entretanto, já ninguém me sabia dizer a identidade da djambacá ou como fazer chegar-lhe a cópia. Em 2012, levei a fotografia para a Guiné-Bissau. Numa deslocação a Bolama, alguém reconhece a senhora da fotografia. Cuja casa ficava a menos de quatro quilómetros da cidade. O local de habitação era, também, o sítio onde recebia os que procuravam a sua ajuda. Era um sítio escuro, pejado de cabeças de animais e roupa interior feminina. A avaliar pela quantidade, eram muitas as que solicitavam a sua intercessão... As inexistentes condições de luz - e a insistente presença de outras pessoas - levaram-me a não fazer uma só imagem do interior. Fica este registo, de uma viagem a um sítio remoto.

domingo, 27 de maio de 2018

A PROPÓSITO DO VOTO DO PCP SOBRE A EUTANÁSIA

Compreendo as razões do voto do CDS quanto à eutanásia. Como compreendo as razões do voto do PCP quanto à mesma matéria. O que me leva, igualmente, a discordar dos que querem sublinhar as "muitas semelhanças" entre os dois partidos. Cada vez mais, os limites para a desonestidade intelectual vão desaparecendo...

Não é tema que se decida com ligeireza. Nem em registo de conversa de café. No que diz respeito à posição do PCP vejo surgirem velhos temores (com a eugenia à cabeça). A eugenia já existe, subliminar, nas condições de vida que uns têm e outros não...

Em todo o caso, não concordo com o voto contra. E não vejo como se deve obrigar alguém a prolongar uma vida sem qualidade e em sofrimento. O que é bem diferente de questionar, como fez um jornalista "até que idade faz sentido que o Estado garanta cuidados de saúde caríssimos que prolongam vidas já com pouca qualidade?". Eis uma decisão que não deverá, nunca, pertencer ao Estado. Ou aos médicos. Na ténue linha que separa a decisão do próprio das pressões que podem ser exercidas pode estar o risco. Nem mesmo assim estou de acordo com o voto contra...

DO ALTO DESTAS FOTOGRAFIAS, 40 ANOS VOS CONTEMPLAM...

Não houve, falha de todos nós, uma fotografia de conjunto. Houve duas, uma da velha guarda, outra da equipa atual. Chamaram-nos "dinossauros", e já me chamaram coisas piores.

Recordações do dia de ontem, quando se celebraram 40 anos de trabalhos arqueológicos (e muito mais que isso) em Mértola.


sábado, 26 de maio de 2018

350.400 HORAS MAIS TARDE... (texto lido ontem)


Há algumas tentações que, segundo me parece, devemos tentar evitar neste tipo de revisões. Fujamos ao saudosismo, à auto-complacência e à auto-justificação. 

Como começou e porque começou o projeto de Mértola? Foi fruto de uma determinada época e de um conjunto de circunstâncias, hoje irrepetíveis. E de um certo estilo de fazer Academia, hoje totalmente impossível. Vou tentar fugir a exemplos pessoais, por isso esgoto já essa quota. Primeiro exemplo: na cadeira de História da Arte da Antiguidade Clássica, Paleocristã e Bizantina (geral e em Portugal) não me apetecia fazer um trabalho sobre o tema da cadeira. Propus um levantamento sobre os fornos de pão ainda existentes em Moura. “Ah, pois, pois, isso é giro, faz lá”, respondeu o Cláudio. E fiz. Hoje, não avalio se bem ou mal, uma tal coisa seria inaceitável. Segundo exemplo: num momento de debate quente, logo a seguir à atribuição do Prémio Pessoa (que ainda deu direito a alguma celeuma), o Cláudio virou-se para o Miguel Rego e para mim e disparou “quero lá saber dos cacos, o essencial disto é a Política”. Creio que é. Ao fim de todos estes anos, o factor mais importante deste projeto tem a ser com o seu posicionamento político e social. E com o que teve de formativo para tantos de nós. Não se trata aqui de por o Cláudio num andor – ainda não -, mas de o termos como catalizador de muitas coisas que aqui se passavam. Algumas passavam-lhe mesmo ao lado, mas se ele não estivesse cá não teriam acontecido. 

É preciso recuar quase 40 anos para termos a perceção que o projeto de Mértola enquanto tal (como ideia pré-concebida) nunca existiu. Não havia projeto algum, com planos quinquenais, e com objetivos. O projeto foi-se construindo. Na altura não se falava em “deliverables” e o que nós queríamos fazer, todos nós, eram coisas. Ou fotografia, ou restauro, ou aprender técnicas tradicionais de construção, ou fazer levantamentos de tecelagem. Ou, até, arqueologia. Deve haver nos arquivos da Câmara e do Campo, o primeiro projeto de adaptação do antigo celeiro da Casa de Bragança a museu. Era um projeto bastante conservador. Com uma coleção permanente e com setores de arqueologia e de etnografia. O que aconteceu não teve, felizmente, nada a ver com isso. A primeira exposição, aberta ao público no outono de 1982, apresentava as cerâmicas islâmicas e a arte sacra em perigo, que fora recolhida em várias igrejinhas do concelho. O painel de entrada, onde a filosofia do projeto se explicava, foi escrito à mão. O pequeno museu tinha e era um misto de exposição e de oficina. Alguns dos restauros eram feitos no local, sob a direção de Monique Pequinot. Luís Pavão, o primeiro dos nossos fotógrafos, andava um pouco por toda a parte. A escavação da alcáçova era, nessa altura, o centro das nossas atividades. Escavava-se das 8 às 13 e das 14 às 18. As trocas de impressões com os colegas de quadrícula foram a nossa grande primeira aprendizagem. Porque os colegas de quadrícula não vinham dos tapetes fofos da Academia e sim dos montes aqui em volta. Eram rapazes do campo. Com horizontes e uma experiência de vida que diferiam dos que nós tínhamos. As nossas conversas andavam em torno da vida, das famílias, do que queríamos fazer e da nossa insuperável otimismo quanto ao modo como íamos mudar o mundo. É justo que se diga que o mudámos na justa medida que que ele nos mudou a nós. Que as mantas e o quotidiano fossem mais importantes que obscuras publicações foi a nossa segunda lição. 

Durante muitos anos, entre 1978 e o verão de 1987 andámos numa expetativa. O Cláudio era renitente - acho que continua a ser – ao contacto com o mundo das empresas e com a banca. Mais do que uma vez começou a abordagem com um “não vimos cá pedir dinheiro”. É claro que íamos, mas ele não o queria admitir. Recordo uma reunião com Rui Vilar, então presidente da Caixa Geral de Depósitos, em que o interpelado, ao ouvir esta frase nos olhou com ar intrigado, certamente pensando “então qual será o motivo da visita?”. 

Em 1987 entram em cenas os projetos da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. José Mariano Gago dava então início à que viria a ser uma das mais importantes revoluções no apoio à Ciência em Portugal. Viria a reforçar essa trabalho à frente do Ministério da Ciência, ao longo de 13 anos. O Campo Arqueológico de Mértola deve-lhe gestos de apoio que, em determinados momentos, foram decisivos. Desde logo nesse anos de 1987. O principal obstáculo às candidaturas da JNICT foi o próprio Cláudio. Estava ausente de Mértola e só a grande custo o demovemos a vir cá assinar os papéis. A frase foi algo como “oh pá isso não vai dar nada; isso já está tudo decidido”. O grande dinamizador deste processo foi Luís Silva. Que a dado momento me disse “se ele não vier, assino por ele”.

Os três projetos da JNICT aprovados – Museologia, História Local e Arqueologia – em breve deram necessidade à criação formal do Campo Arqueológico de Mértola. Que só nasce, formalmente, em 1988. Dez anos após ter iniciado atividade.

Os projetos foram postos no terreno, não sem sobressaltos. Não interessa fazer aqui esse historial, mas em final de 1991, e depois da reprovação da maior parte das novas 
candidaturas, a situação era angustiante. Também não quero recordar aqui as penas desses tempos complicados. O momento decisivo para o Campo Arqueológico tem lugar na noite de 5 de dezembro de 1991, quando é atribuído o Prémio Pessoa a Cláudio Torres. Ele não tinha, na altura, o estatuto e a notoriedade que hoje tem. No dia seguinte, o locutor da Rádio Renascença, certamente mais virado para o automobilismo, dizia, em tom enfático, que o galardão tinha sido entregue ao arqueólogo César Torres. Os dias seguintes foram intensos. O prémio foi contestado por parte da Academia. O que se fazia em Mértola não era Ciência, era Agitprop. Aqui não se publicava, não havia papers, era tudo museus e conversa. O Cláudio reagiu com destempero, aludindo aos “ratos cinzentos” da Universidade. Um deles, um arabista baixinho e sempre vestido de fato cinzento, recusaria tempos mais tarde estender a mão a um perplexo Cláudio Torres.

Não vou ter a veleidade de, nos 6.000 caracteres de texto que me faltam, fazer uma história do Campo Arqueológico. Algo que não farei, nem agora, nem depois. Mas queria sublinhar o ar festivo, descoordenado, competente, financeiramente falido e politicamente comprometido que marcou essa primeira fase da casa. Os anos seguintes foram marcados por alterações significativas no rumo da casa. Surgiu a “Arqueologia Medieval”, à qual um arqueólogo muito crítico dos métodos aqui da casa vaticinava dois números de vida. Parece que já se fizeram mais alguns... Depois veio o Projeto Integrado de Mértola, que permitiu consolidar projetos e avançar na rede de espaços musealizados da vila. Fizeram-se teses, publicaram-se livros e acabou o charivari em torno da agitprop. Houve duas importantes exposições fora de portas, em Lisboa, em 1998; em Tânger, em 1999. Em 2001, terminava-se o Museu Islâmico, ao fim de 12 anos de trabalho. Mudaram-se a instalações para a Casa Amarela, no que foi o ganhar de uma autonomia própria, em termos de espaços. 

E aqui estamos, 40 anos depois do início, que no meu caso são 35. 

O Campo Arqueológico perdeu esse caráter de sítio único na arqueologia islâmica. Mil escavações floresceram. O reflexo dessa atividade está patente em iniciativas como a do CIGA, nos colóquios, nas publicações, nas teses de mestrado e de doutoramento, na inesperada duração da revista “Arqueologia Medieval”. E, ainda e sempre, nos pólos museológicos que se multiplicaram pelo sul do País. Nesse sentido, é claro que o Campo perdeu a “exclusividade” de outrora. Ainda bem que a perdeu. 

Outras coisas perdemos, e dessas tenho pena. O Campo Arqueológico deixou de ter, com a saída do Cláudio da universidade, uma certa centralidade que lhe era tão necessária. Primeiro facto e mais decisivo: as bateladas de jovens que aqui desembarcavam todos os anos constituiam uma permanente renovação. E um pretexto para um permanente debate e para uma formação que era feita no dia-a-dia. Sem a qual não estaríamos aqui, não é verdade? Uma das imagens mais impressivas que guardo é o do constante passar de gente por aquele dispensário. No meio de um ambiente barulhento e intimidatório (os tímidos, como confesso ser o meu caso, passam horrores nesse momentos), as conversas cruzavam-se. O Vitor Mestre estudava, já então, a arquitetura vernacular e a forma de a fazer perdurar e tornar eterna. A Cristiana Bastos andava pelos montes das serras algarvias. Percebia-se claramente, pelo fulgor da sua inteligência, que faria um percurso de exceção. O Carlos Pedro, uma das pessoas mais cultas que já conheci, andava em pesquisas pelos montes. Um dos seus trabalhos viria a ser arruinado por um roubo ocorrido na sociedade de um dos montes (nos Simões, creio). O pobre Carlos Pedro, que lá pernoitava e era alheio ao que se passava, veio de lá desmoralizado e sem vontade de continuar. Do Pavão já falei. Mais tarde viriam o António Cunha e, depois, José Manuel Rodrigues. A Isabel Magalhães e a Ângela Luzia foram os primeiros trunfos que o Cláudio tirou do baralho. Foram, os três, autores do livro “Mantas tradicionais do Baixo Alentejo”. Publicado em 1984 foi o primeiro trabalho que se editou. Nem cerâmica, nem museus, nem arqueologia. O testemunho de uma atividade popular em extinção ganhava protagonismo. Ainda bem que assim. Porque nesses pequenos gestos se marcou a diferença e o projeto se tornou diferente dos outros. Não estaríamos aqui sem a generosidade de tantos, mas tantos foram, ao longo de décadas. Levaria aqui o resto do dia, e já só me restam quatro minutos para terminar. Sendo certamente injusto, e deixando muita gente de fora, referirei ainda as figuras tutelares de António Borges Coelho, de José Mattoso e de José Luís de Matos. Que estão e estarão sempre na equipa. Posso também referir a generosidade solidária de amigos como Luís Bruno Soares. Como José Alberto Alegria. Como João Paulo Ramôa. Podia continua a recitar nomes: o João Simas, o Mané, a Mifas, o Rui Mateus, a Guisha, o Abdallah, a Rosa Barreto, a Nádia e a Rossana,o Beto e o Betão, o Laser e o Proveta, o Mário Pereira, o nosso José Carlos, o Fernando Branco, o Miguel Rodrigues, o Luís Filipe Oliveira,a Xinha, o Rui Santos, o Miguel Rego. E os de fora, Malpica, Acién, Rosselló, Zozayaetc. etc. etc. Não tenho a tarde toda, pois não?

Não vou nomear os que estão ligados, ainda hoje, ao projeto e que aqui vivem. Aqueles que, pessoalmente, me receberam no verão de 1991. Abro uma exceção: Manuel Passinhas da Palma, construtor de peças e de coisas. E inventor de soluções improváveis. 

Os que por aqui passavam, ainda que esporadicamente, foram o tecer de uma rede que ainda hoje se mantém. Anteontem, o Jorge Silva dava uma entrevista ao “Diário de Notícias” sobre o seu percurso gráfico. O Jorge, autor no nosso primeiro logo, não refere Mértola, mas ele está cá. Estará sempre. Como aqui estarão todos os outros de quem falei antes. Sempre e para sempre. A construção desse futuro já não passa por eles. Passa já pouco por nós. Passa muito pelos que vierem a seguir.

Termino com um texto de Fernando Pinto do Amaral.

Desceu tão de repente o sol por onde
andámos. Já não o vejo
essa janela para além das árvores,
esse lugar-refém 
de tudo o que senti. A própria infância
confundiu as imagens, quis amar
a voz do seu segredo. 
Se ainda existe o verão, porquê
a nostalgia, a dor feliz que foge e não
regressa? A cada instante parece outra
a melodia
nos olhos do meu pai do meu irmão
e eu sei adormecer, rezar ainda
com a minha mãe à cabeceira.

Quais são as cores da morte? Uma paisagem
acontecendo, em sombra, os objectos
esquecendo-se de nós - numa só vida
começam e acabam mais outras 
vidas.

Era uma casa cor-de-rosa e do meu quarto
Podia ver-se o mar. 

quinta-feira, 24 de maio de 2018

SE A MINHA MÃE SABE DISTO...

As cenas que um juiz tem de aturar...

O LABIRINTO DA SAUDADE

Ante-estreia do filme, esta noite, na Fundação Gulbenkian. Eduardo Lourenço é absolutamente extraordinário. Pelo que diz e pela forma como representa (um ator de corpo inteiro). O documentário em si é muito pouco extraordinário. Resvala para a brincadeira, para o kitsch e entra numa certa estética pseudo-filosófica, à facebook. Eduardo Lourenço merecia muito mais. Porque as palavras são tocantes, sensíveis e, quando fala de Annie, de uma enorme nostalgia. Um Peter Greenaway iria bem para este projeto, creio eu.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

CRÓNICAS OLISIPONENSES - VI

Fui dar com esta divertida preciosidade no facebook da Câmara Municipal de Lisboa. A primeira lista telefónica, de maio de 1882, tinha 22 subscritores. No meu telemóvel tenho um pouco mais que isso...

ROBERT INDIANA (1928-2018)

O homem de LOVE vivia em reclusão, há vários anos. Tido como de temperamento difícil (um expressão que tardo em descodificar), viu a sua obra injustamente ofuscada por uma só palavra e por um só trabalho. Ainda há dias referi a juventude das suas criações. Robert Indiana partiu agora, levando LOVE e HOPE.

JÚLIO POMAR (1926-2018)

Dois cidadãos que geraram unanimidade: António Arnaut e Júlio Pomar. Este último percorreu longas décadas, num percurso coerente, solidário, sério. Evoluiu das margem do neo-realismo para uma pintura poética e hedonista. Como neste Le bain turc, d'après Ingres. O quadro tem 50 anos. Mas não parece.




De uma entrevista a Júlio Pomar, ontem desaparecido, no D.N.:

O que ensinava?
Desenho, desenho geométrico. Mas em menos de um mês tinha ordem de despedimento. E foi um bem. Tenho a agradecer muito ao Salazar e aos seus acólitos, que cuidavam da boa reputação dos ensinantes. Fiquei um bocado atrapalhado na altura, mas foi uma coisa muito boa que eles me fizeram. Eu podia ter-me habituado, como era o caso dos meus colegas que acabavam em professores, e depois bonecos era uma coisa que se fazia quando se era estudante, na escola. Na melhor das hipóteses, ia-se à Brasileira. Estou a fazer graça, mas no fundo é muito a sério. Não me parece que eu tivesse uma massa diferente dos outros. Se eu tivesse continuado, aquilo tomava o tempo e o tempo rareava para outras coisas, acontecia-me a mesma coisa. Havia grandes probabilidades. Foi ótimo. Por mal fazer, bem haver.

A MAGIA QUE UMA BOLA TEM

Atenção, tinha dito que não falava de futebol e mantenho. Dedico estas linhas a uma das originalidades da Taça de Portugal. Ou seja, a forma como a bola chega ao relvado. Este ano, foi com um sofisticado truque de magia, que teve o árbitro como cúmplice. Como é que Mário Daniel concebeu aquilo? Pois, o enigma é esse.

Ao longo dos anos, a bola chegou de várias formas. A mais radical de todas foi na final de dia 7 de junho de 1980. Os meus 17 anos apanharam um cagaço medonho... Às tantas vejo surgir, do lado sul, um C 130, que picou sobre o relvado até ficar abaixo da linha das bancadas. A meio do campo, a bola foi lançada de dentro do avião. Depois, o pesado avião tomou lentamente altura, passou a poucas dezenas de metros por cima da bancada norte e desapareceu de vista. Nunca tinha visto, e não voltei a ver, um avião a voar à altura dos meus olhos, de frente para mim... Por momentos, pensei que o coração queria sair da camisa.


terça-feira, 22 de maio de 2018

EXPO 98

Faz hoje 20 anos que abriu. Onde é que eu estava nesse dia? Na Rua Prof. Jorge Silva Horta, em Lisboa. Na sede do Círculo de Leitores, a escassos 300 metros do preciso local onde me encontro. Reviam-se as últimas provas de um livro que iria ser lançado, na Expo, daí a menos de dois meses.

A Expo foi uma grande aposta vencida. Passei por lá três ou quatro vezes, fugindo às bichas de visita a alguns pavilhões. Um sítio muito bonito e muito agradável. As vozes dos Velhos do Restelo calaram-se (é ver o que se dizia e quem dizia...). A Expo está na cidade. E está muito bem.

Permanece, como mistério, o fantasma chamado Pavilhão de Portugal.

CRISTO(S)

Parece que foi ontem, mas o momento de arranque deste projeto ocorreu em fevereiro de 2015. Na verdade, com outros afazeres, não havia muito "espaço". Uma primeira seleção de quadros ficou terminada no sábado. São quatro dezenas e meia de obras sobre esta temática: Cristo. De um só pintor. Depois, achei que deveria alargar a escolha. Porque há muitas pinturas que, de forma explícita ou implícita, nos remetem para a mãe. Melhor dizendo, para a Theotokos. E depois para a cruz, para os cavaleiros, para os pastores. Por aí andamos. Não tardará muito que a proposta final tome forma.


MOURA NA ARCO


Moura esteve na Feira de Arte Contemporânea? De certo modo, sim. Estiveram o amarelo e o preto da nossa terra. Na sexta-feira Moura esteve, assim, deste jeito, no pátio da Cordoaria. Como no blues que Ray Charles celebrizou Still in the peaceful dreams I see / The road leads back to youMoura on my mind. Não será bem assim, a estrada não me levará lá, porque os caminhos são outros. Mas os locais da juventude não nos largam. Nunca.

O OURIÇO

À procura de ilustrações científicas para um trabalho, e pesquisando em várias línguas, fui dar com este bonito desenho e com este bonito poema. Do desenho não sei a origem exata, o poema é de um grande autor mexicano, José Emilio Pacheco (1939-2014).


EL ERIZO
El erizo tiene miedo de todo y quiere dar miedo
en el fondo del agua o entre las piedras.
Es una flor armada de indefensión,
una estrella color de sangre,
derruida en su fuego muerto.

Zarza ardiente en el mar, perpetua llaga
resiste la tormenta en su lecho de espinas.
El erizo no huye: se presenta
en guerra pero inerme ante nuestros ojos.

Al fondo de su cuerpo la boca, herida abierta, discrepa
de su alambre de púas, su carcaj
de flechas dirigidas a ningún blanco.

Testigo vano de su hiriente agonía,
el erizo no cree en sí mismo ni en nada.
Es una esfera
cuya circunferencia está en el vacío.
Es una isla
asediada de lanzas por todas partes.

Soledad del erizo, martirio eterno
de este San Sebastián que nació acribillado.
El erizo nunca se ha visto,
no se conoce a sí mismo.
Tan sólo puede imaginarse a partir
de los otros erizos,su áspero prójimo,
su semejante rechazante.

Bajo el mar que no vuelve avanza el erizo
con temerosos pies invisibles.
Se dirige sin pausa hacia la arena
en donde está la fuente del silencio.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

FERNANDO PIMENTA, O MEU AMIGO ESTÁ NO DESPORTO "ERRADO"...


Ganhou duas medalhas de ouro e uma de prata na Taça do Mundo? E é um dos melhores do planeta na sua modalidade? Ai sim? Tivesse escolhido outro desporto e logo via se não era entrevistado no telejornal dia-sim-dia-não...

AS LÁGRIMAS DE ARNAUT

Foi uma das imagens televisivas que me causou mais impacto, numa já longínqua adolescência. À saída de uma visita à Mitra, o Ministro dos Assuntos Sociais foi-se abaixo e começou a chorar. Foi prestando declarações aos jornalistas, enquanto fumava um cigarro e (se) tentava acalmar.

António Arnaut foi ministro durante sete meses, em 1978. Sempre defendi que não é duração da permanência nos cargos que torna a ação relevante, et pour cause... 

O Serviço Nacional de Saúde, de cuja arquitetura tem a paternidade, foi aprovada apenas em setembro de 1979. Viviam-se os dias do 5º. Governo Constitucional. Era ministro Alfredo Bruto da Costa, outra figura notável do nosso País.

O Serviço Nacional de Saúde cresceu e afirmou-se. Há falhas? Há. Há insuficiências? Sim. Há atrasos? Também. Falta de pessoal? Sem dúvida. Ainda assim a qualidade do serviço que há em Portugal não tem comparação com a realidade de há 40 anos. Em termos globais, foi dos setores em que houve mais se progrediu em Portugal. E que melhor serviço é prestado. Fui disso testemunha, enquanto utente ou amigo ou familiar de utentes, ao longo dos anos.

Talvez por isso, e pelo que custa (e ainda bem que custa) ao Estado, tenhamos de ler coisas como esta:

"Até que idade faz sentido que o Estado garanta cuidados de saúde caríssimos que prolongam vidas já com pouca qualidade?" (José Manuel Fernandes - Observador - 5.4.2018). Nesta pergunta, de um jornalista próximo da extrema-direita, está a essência do combate ao S.N.S. Quem quiser saúde que a pague. Exatamente o contrário do que pensou, e fez, António Arnaut.

ARCO 3/3

Alinhei uns 20 nomes no programa. Alguma fotografia (ou, antes, predominantemente fotografia).  Paulo Nozolino, Marina Abramovic, Kiluanji Kia Henda, Axel Hütte, Inês d'Orey, Mónica de Miranda, Rui Calçada Bastos, Vasco Araújo... Se um caminho sigo, é o da procura da memória dos sítios. Uma linha que está presente em todos os nomes que referi. As preocupações de reconstrução do passado refletem-se nos gostos de um historiador. Que também foram ao encontro dos trabalhos do jovem Paul Beumer. Que tanto me remeteram para as obras de Rachid Koraichi.


domingo, 20 de maio de 2018

E PORQUE JÁ CHEGA DE FUTEBOL...

... este é o último texto sobre o tema, em várias semanas. Vicente Jorge Silva tem hoje uma brilhante crónica no "Público". Transcrevo um excerto:

Ora, ao sequestrar todo um país, depois do sequestro da equipa de futebol em Alcochete - do qual é indiscutível autor moral, por ter criado as condições emocionais e psicológicas para que acontecesse -, Bruno de Carvalho tornou-se a vedeta de um caso em que Portugal, através dos media e das conversas quotidianas, se revê como num espelho.

Há dias, contava o linguista Fernando Venâncio, que viveu décadas na Holanda, que nunca soube o nome de nenhum presidente dos principais clubes desse país. Aqui não só sabemos, como assistimos - ontem - a uma penosa conferência de imprensa em que um deles monologou durante 81 minutos. Logo a seguir, o clube rival veio publicamente chamar-lhe "charlatão". Tudo isto com larga cobertura noticiosa.

E, caramba!, o futebol é um jogo tão bonito!

ARCO 2/3

De novo a ARCO. Devo estar a ficar conservador, estou de certezinha. Coisas do tempo que passa. Amanhã explico porquê. Mas não tanto que goste de "colagens" a formas de expressão antigas. Daí que não tenha percebido o gosto pop de Heimo Zobernig (n. 1958), que parece inspirado em Robert Indiana (n. 1928), trinta anos mais velho e bem mais jovem.


sábado, 19 de maio de 2018

ARTE OFICINAL


Escrevi aqui, em 19.4.2017.

As oficinas [neste caso da C.M.M.] são sítios extraordinários. O mais interessante é ver como os objetos mais simples do quotidiano ganham novas formas e novas funções. Há dias, um conjunto de placas de matrícula ganhou contornos diferentes. Assim, verticalizadas e fora do seu contexto habitual, podem ser junk art ou um ready-made. Não sei se o são, mas o quotidiano tem, no seu improviso, coisas assim divertidas.

Ontem, na ARCO, estavam expostas várias placas metálicas retorcidas. Uma escultura com o apropriado nome de Palimpsesto, trabalho de Kennedy Yanko. Um breve flash em direção ao passado... E a certeza da Arte no quotidiano.


ARCO 1/3

Passagem rápida pela ARCO. Duas horas e média é passagem rápida com tanta coisa para ver. Amanhã ou depois farei uma listagem do que mais me chamou a atenção. Com ênfase na fotografia. E não havia muita fotografia.

Não conhecia esta, de Paulo Nozolino, à venda na Quadrado Azul. Não foge muito ao tom sombrio de outros trabalhos feitos na mesma altura, no Egito. A luz branca sobre a base da pirâmide é trabalho de laboratório, à moda antiga...

Preço da fotografia? 12.500 €, valor de tabela. Os bons clientes não comprar por este preço, decerto.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

DECÁLOGO MEDITERRÂNICO: FIGOS


As figueiras de Mallorca, pela paleta de Hermenegildo Anglada Camarasa (1871–1959). É uma das mais perenes e impressivas imagens do Mediterrâneo. A palavra figo, na sua formulação berbere está na origem do regionalismo acarro.

Figueira 

Ó árvore que irrompes da tua secura 
suportando o penoso desdobrar de teus ramos 
amaldiçoada 
ofereces ainda a doçura de teus frutos 
a sombra de tuas folhas 
a firmeza do teu apego à terra 

Ó dura bruta forma 
heroína da escassez 
ó teimosa 
que insistes e insistes 
e nos ensinas 
que a vida é feita de incessantes mortes 
e que a nós 
suas futuras vítimas 
nos aguarda 
a todo o momento 
a derrocada do templo 
sem nenhum outro fruto 
além da amargura 

Ó doçura 
porque amargas tanto 
a nossa tentação de florir 
ao mesmo tempo sendo tudo 
e nada ? 

Ana Hatherly