O sol nasce a oriente, e a arte moveu-se de oriente para ocidente. O esplendor da arte islâmica está hoje sobretudo nos grandes museus europeus e norte-americanos. Por isso mesmo a exposição “O gosto pela arte islâmica” se socorreu de peças que se encontram nos Estados Unidos, em cinco países da Europa comunitária, às quais se juntaram as que o próprio Museu Gulbenkian detém.
A exposição, e o esplendoroso catálogo que a acompanha, são uma parada de estrelas. É a elite ocidental que está no centro desta história. São financeiros e magnatas como John D. Rockfeller Jr. e John Paul Getty. Que, tal como Calouste Gulbenkian, alimentaram as suas coleções com a decisiva ajuda do petróleo. São historiadores da arte como Wilhelm von Bode e Ernst Künhel. São orientalistas e colecionadores, como Charles Schefer ou Frederic du Cane Godman. Pelo meio, fica uma intensa trama de contactos, nas quais desempenham papel de destaque negociantes arménios, com os quais Gulbenkian manteve relações próximas. A movimentada história das peças acompanha de muito perto a geopolítica do Médio Oriente. Uma peça exposta, um canudo de farmácia [cat. 111] do período zengida e aiúbida (final do século XII ou início do século XIII) sintetiza bem as mudanças ocorridas. Entre 1869 (ano do nascimento de Gulbenkian) e a atualidade, a cidade síria de Raca, de onde a peça provém, teve dez diferentes estatutos políticos. Os orientais ficaram longamente à margem deste processo de construção da sua própria identidade. Tanto do ponto de vista artístico, como do ponto de vista político.
A exposição é uma viagem pela sensibilidade pessoal de Calouste Gulbenkian. Que ora se interessou por cerâmicas, ora por tapetes e por livros – e por eles porfiou -, mais tarde pelos vidros. A política de aquisições é-nos mostrada num gráfico, fundamental para se perceber a lógica de construção da coleção. A exposição tem cinco secções que refletem cinco momentos históricos, a construção do gosto pela arte islâmica (a palavra “rise” parece, neste contexto, mais adequada) e a forma como esse gosto acompanhou de perto a geopolítica do Medio Oriente. É o primeiro dos grandes trunfos do trabalho de curadoria de Jessica Hallett. Ou seja, a inequívoca beleza das peças e o seu valor artístico são enquadrados no seu tempo. Essa leitura é acompanhada por uma outra, mais minuciosa e erudita. “O gosto pela arte islâmica” é um percurso cruzado entre as peças em si, da fonte inspiradora em que muitas delas se tornaram – a exposição inclui obras da segunda metade do século XIX e de inícios do século XX, de Philippe-Joseph Brocard [cat. 37] e de William de Morgan [cat. 77], diretamente inspiradas em peças mamelucas ou otomanas – e do modo como o gosto, não isento de equívocos e de preconceitos, pelo oriente se espalhou na Europa, a partir do século XIX. O que está exposto tem uma história concreta. Um minucioso trabalho sobre o percurso de muitas peças ajuda-nos a entender o caminho que percorreram, quem por elas se interessou, como e quando foram adquiridas. Ao nosso dispor estão catálogos antigos, que nos mostram que o interesse pelas peças que estamos a ver tem, também ele, uma longa história.
Luz e transparência são ideias chave da exposição. Se o trabalho de Jessica Hallett nos leva arte dentro, Mediterrâneo fora, o projeto de Mariano Piçarra foi elemento decisivo para que o discurso tenha ganho luminosidade e transparência. Que são, nitidamente, outras das ideias chave da curadora. E que peças como as lâmpadas mamelucas tão bem sublinham, iluminando o mundo em volta com a luz e com as palavras do Alcorão.
“O gosto pela arte islâmica” levanta, a despeito do seu próprio título, uma ponta do véu sobre um debate que se adivinha estar a ser retomado. Se esta arte começou, muitas vezes, por ser “persa”, o que lhe conferia maior prestígio, o caminho para se chegar à designação atual foi longo. Só em 1928, com a criação do Museu das Artes Turcas e Islâmicas, em Istambul, o termo se generalizou. Mas, como escreve Jessica Hallett, “atualmente, com a globalização e a rápida evolução de definições e identidades nacionais e regionais, alguns académicos consideram eu o termo ‘islâmico’ continua a ser útil para englobar formas híbridas e múltiplas identidades, enquanto outros argumentam que reflete uma noção eurocêntrica do ‘Outro’. E o debate continua em aberto...”. Há peças que tornam o debate mais aceso e são, por isso, ainda mais interessantes. Como o cálice com inscrições turco [cat. 18], que aproxima oriente e ocidente. E que nos faz recordar uma cruz processional do Museu Nacional de Arte Antiga (M.N.A.A.), certamente feita por mãos muçulmanas.
O início e o fim de “O gosto pela arte islâmica” são simbólicos e de deliberada intenção. Entra-se por um arco otomano [cat. 4], de finais do século XVI, oferecido por Gulbenkian ao M.N.A.A.. É uma peça que reúne geometria, caligrafia e fitomorfismo. Uma excelente síntese de vários domínios da arte islâmica. Não nos escapa ao olhar o mahmal, o palanquim cerimonial onde o sultão se fazia transportar na peregrinação a Meca [cat. 7], peça chave da exposição, enquanto obra de arte e símbolo do poder. Tal como não nos é indiferente a mensagem final do vaso com pássaros a voar [cat. 146], pela raridade da peça, pelo facto de ter uma das derradeiras aquisições do magnata arménio e por nos remeter para soluções de liderança que não dependem de homens providenciais.
Expor a arte islâmica é importante? Sem dúvida que sim. Mas fazer da ocasião uma reflexão estética e política é crucial. Foi isso que se conseguiu. E que importará, um dia, pôr em diálogo com a arte islâmica ocidental.
“O gosto pela arte islâmica”
Curadoria – Jessica Hallett
Datas – 12 de julho a 7 de outubro de 2019
Horário - 10:00 – 18:00 (encerra à terça-feira)
Horário alargado: sextas das 18:00 às 21:00.
Fundação Calouste Gulbenkian, Edifício Sede - Galeria Principal
Av. de Berna, 45 A - Lisboa
Classificação:*****
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