Tem-se tornado quase
fastidiosa a chuva de melhores disto e melhores daquilo: a melhor praia, a
melhor bica, o melhor pastel de natal, a melhor marisqueira, o melhor por do
sol, o melhor trail etc. Um pesadelo de coisas melhores.
Fui, há meses, a uma
cidade muito conhecida, um pouco longe daqui. No regresso “foste ao sítio tal?
E ao bar xis?” E eu não, nem a um nem a outro, sou pouco de andar em rebanho. E
isto agrava-se com a idade.
Qual é o melhor vinho
do mundo?, eis a questão. Há vinhos astronomicamente caros, isso sim. Uma
garrafa de Romanée-Conti, de 1945, foi vendida por 480.000 euros; uma garrafa
do norte-americano Screaming Eagle, de 1992, chegou aos 455.000 euros. Preços
obscenos. Ao pé deles, o Barca Velha a 900 euros quase parece uma coisa de saldos.
Não sou grande
bebedor – embora já tenha dado jeito a algumas pessoas dizer o contrário… - e
também não sou um conhecedor. Gosto dos vinhos de Penedès, dos alentejanos, dos
da Beira Interior, dos durienses, dos californianos, de alguns exotismos madeirenses
e açorianos e por aí se fica a minha geografia…
Vem isto a propósito
do mais extraordinário vinho que bebi até hoje. Fui há muitos anos, mais de 30,
na Corte Azinha, uns cinco quilómetros a nordeste da Corte do Pinto, no concelho
de Mértola. Várias vezes me tenho perguntado o que esperávamos encontrar, o
Miguel Rego e eu, na Corte Azinha. Era inverno e o dia estava frio. A pessoa
com quem fomos falar – porque teria informações sobre sítios arqueológicos, mas
afinal não tinha nada por aí além... – recebeu-nos com calorosa cordialidade.
Era um “homem do campo”. Parecia-me muito velho mas, provavelmente, seria mais
novo do que eu sou hoje. Não me lembro da face, mas recordo-me que era magro,
morenamente mediterrânico e, porque é que lembro disto?, usava chapéu.
Convidou-nos a entrar e fez questão de nos oferecer um copo de vinho. Foi
buscar um garrafão, sim!, à maneira antiga, e encheu-nos os copos com a delicadeza
e a cerimónia de quem está a servir um Romanée-Conti. Do vinho recordo-me com
nitidez, sim, lembro-me do tom carrascão, de marcada rudeza. Mas a simpatia e a
boa vontade em nos ajudar fez com que aquele vinho simples se transformasse no
melhor dos nectares. A conversa continuou, mansamente, às vezes com poucas palavras,
com o gosto de falar de coisas da vida, com o vinho a temperar a manhã fria. Da
arqueologia pouco se adiantou, mas o calor do vinho chegou-nos à alma. Tenho-me
lembrado muitas vezes desses momentos.
Falei há dias com o
Miguel sobre esta nossa improvável expedição. Os anos vão passando e, com
firmeza, se me vai vincando a certeza de que aquele foi o melhor vinho que já
bebi. Não me falem em castas, nem em “frutados”, nem em “finais prolongados”. Sem
o calor humano não há vinhos que valham a pena. Aquele vinho, um pouco áspero,
foi o melhor vinho do mundo. Continua, pelo fator e pelo calor humanos, a sê-lo.
Até hoje.
A crónica saiu em "A Planície". A fotografia data de 1999 e é de Martin Parr. Intitula-se Reines de la Nuit (sipping wine). É a melhor fotografia de alguém a beber um copo de vinho.