terça-feira, 2 de outubro de 2018

UM MECENAS, UMA BOLSA LITERÁRIA E UM JACKPOT EM SILVES, NO SÉCULO XI

Relatado pelo poeta Ibn Habus, segundo a obra de al-Marrakushi:

Cheguei um dia a Silves, depois de ter estado três dias sem comer. Perguntei a quem me poderia dirigir naquele local e um habitante indicou-me Ibn al-Milh. Fui então à oficina de um encadernador que, a meu pedido, me deu uma pele muito fina e um tinteiro, e escrevi versos em louvor daquele de quem me tinham dito o nome; fui depois a sua casa. Encontrei-o no vestíbulo e ele respondeu de forma muito graciosa à minha saudação, acolhendo-me da forma mais amável: "suponho, disse-me, que és estrangeiro". Assim é, respondi. "E a que classe de homens pertences?". Sou, respondi, um literato, um poeta, quero dizer, e pus-me a recitar os versos que tinha acabado de escrever. Ouviu-os muito bem, convidou-me a entrar e, fazendo que me servissem de que comer, conversou comigo com uma amabilidade que nunca tinha visto. Quando pedi licença para me ir embora, saiu e voltou a entrar, seguido por dois criados que traziam um cofre, que fez pousar à minha frente. Abriu-o e tirou de dentro 700 dinares almorávidas, que me deu. "Toma o que é teu", disse-me, entregando-me mais uma bolsa contendo 40 meticais, "isto é mais uma prenda minha". Surpreendido com as suas palavras, que eram para mim um verdadeiro enigma, perguntei de onde vinha "o que era meu". "Fica a saber, respondeu, que pus de parte uma das minhas propriedades, cuja receita anual é de 100 dinares, que destino a poetas. Acontece que nenhum me procurou, nos últimos sete anos, devido aos problemas que assolam o território, e foi assim que se acumulou a soma que te é entregue. Quanto aos 40 meticais, são dos meus rendimentos pessoais". Foi assim que entrei em casa dele esfomeado e pobre e saí saciado e rico.

Ibn al-Milh viveu no século XI. Este episódio está narrado na obra Histoire des Almohades, de Abd al-Wahid al-Marrakushi, escrita em 1227 d.C.. Usei a versão de E. Fagnan, publicada em Argel, em 1893.



Poema de Ibn al-Milh, na tradução de António Borges Coelho
(vol. IV de Portugal na Espanha Árabe)

O jardim brinca com o zéfiro
e parece convidado-lo para te atrair
da alba à báquica tertúlia.

Está ébrio do jugo dos seus ternos ramos.
E quando comovedores o cantam os seus pássaros
repete a canção.

Aí não faltam as flores que com seus olhos
parecem erguidas em lugares propícios
para expiarem os amantes.

As flores ressaltam sobre as folhas verdes
como a luz se revela mais brilhante
num fundo de trevas.

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