segunda-feira, 1 de novembro de 2021

COMO SE FEZ UMA CIDADE

Os sítios não são um acaso da sorte ou do destino. Os primeiros a chegar foram, ao mesmo tempo, geólogos e geógrafos e arquitetos e urbanistas. Não sabiam que o eram, mas esse é o detalhe menos importante da História. Preferiram pontos altos e a proximidade dos rios ou da costa, para se protegerem das ameaças que conheciam e, sobretudo, das que não conheciam.

 

Isso é mais visível quando se levam para outras paragens os modos de vida dos sítios de origem. Aí, o simples ato de construção torna-se aventura, descoberta e ousadia. Foi assim em Mazagão, em Bissau, em S. Salvador da Baía, em Goa, por todos os sítios onde se andou. Várias vezes, muito menos do que gostaria, fui constatando como esse espírito empreendedor levou para outros sítios um modo de vida e uma forma de olhar o mundo. Interessa-me menos constatar a presença dos grandes modelos da arquitetura religiosa ou militar ou ver como os palácios foram transplantados. Gosto muito mais de ver como aqueles cujo nome nunca passará para a História se adaptaram a novos sítios, usaram materiais que não conheciam e passaram o espírito do lugar onde nasceram para onde haveriam de viver e de ficar para sempre.

 

Angra do Heroísmo é um desses sítios, e um dos mais fascinantes entre os não muitos que conheço. Toda a cidade velha é planeamento antigo, bem sedimentado pelo tempo, numa ligação entre terra e mar. A ribeira que cruzava a sua parte oriental desapareceu há muito, canalizada e subjugada à vontade dos homens. Pelas encostas há arquitetura vernacular de grande qualidade. Que foi moldada pelos homens e que moldou um modo de vida. Angra é um meio caminho entre dois continentes. Uma realidade física e visual. É o Brasil antes do Brasil. A escala das casas, as portas e as janelas que crescem em altura já não são o Alentejo ou a Estremadura, mas ainda não chegaram a Santo Antônio de Igarassu ou ao Rio de Janeiro. Os tons rosa, azul, verde, amarelo, cinza, já não têm a brancura algarvia. Mas estão ainda muito longe do frenesim vermelho ou anil de Olinda. O que aqui é discrição pastel, no Brasil será festa sem limites. Angra é esse meio caminho, feito de génio e mantido até hoje.


No dia 1 de janeiro de 1980 a cidade foi devastada por um terramoto. Foi rápida e duramente refeita. Recompôs-se e seguiu caminho. Em 1984 passou a ser Património da Humanidade. Uma justiça que se me confirmou nas poucas vezes que aqui vim. Uma excecionalidade feita de cultura, de persistência e de personalidade. Manifestada de forma individual e coletiva. São assim as cidades de longa História, em Portugal ou nos trópicos. Vivem numa permanente reconstrução e numa contínua reinvenção. Vivem num equilíbrio instável, entre a necessidade de prosseguir a caminhada, de inventar novos projetos, de criar novas soluções e a ameaça que gente sem escrúpulos, urbanistas pouco imaginativos e autarcas crassamente ignorantes para essas cidades constitui. Em Angra, o caminho é sólido. Em muitos outros sítios não o é, infelizmente. Para grande tristeza minha.


Crónica em "A Planície"


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