Mais uma
crónica para mourenses acima dos 50 anos. Mais um desafio à memória de muitos
de nós. A começar pela minha...
Chegaram a
Moura pela primeira vez na Primavera de 1970. A minha recordação é essa, mas
pode ter sido antes. Durante vários anos, e sempre na mesma altura, lá chegavam
eles. Eram “os holandeses”. Um casal mais os filhos, que estacionava a carrinha
(seria uma Volkswagen Transporter, daquelas conhecidas como pão de forma?) na
zona do matadouro. Mas seria mesmo na zona do matadouro, ou essa ideia
fixou-se-me por lá a ter visto uma vez?
Até meados da
década de 70, “os holandeses” faziam parte do nosso calendário. A notícia da
sua chegada corria célere e era bichanada nas nossas aulas da escola primária
“já chegaram os holandeses”. Corriam a vila, andavam pelas tabernas e
relacionavam-se com a rapaziada mais nova. Nós com os miúdos, o casal com a
juventude irrequieta local. Por vezes, traziam roupa já usada em razoáveis
quantidades, que distribuiam aos mais carenciados. Nessa Moura que muitos já
não conheceram, e outros preferem esquecer que existiu, as diferenças económicas
e sociais eram mais flagrantes e violentas que hoje. Lembro-me de uma cena de
pancadaria, motivada por alguma injustiça na distribuição do espólio trazido das
margens do Mar do Norte.
Um belo dia,
o holandês mais velho ganhou, aos meus olhos, o estatuto de quase-mago. Ou de
mago mesmo. O televisor avariara-se. Ouvia-se o som, mas imagem nada. Os
desenhos animados do Speedy Gonzalez e do Picapau tornaram-se uma miragem
sonora... Eis que alguém informou o João que “o holandês” sabia umas coisas de
televisores. Apareceu-nos a um final de tarde, com uma maleta de onde tirou uma
válvula. Abriu o aparelho, substituiu a peça defeituosa e “abracadabra”, o
Speedy Gonzalez voltou a aparecer no écran. Pouco me faltou para desmaiar de
emoção.
Um ano, na
época habitual, “os holandeses” não vieram. Talvez venham mais tarde,
apostámos. Não chegaram mais tarde. Tal como não deram sinal de vida no ano
seguinte. Nem nos que se seguiram. A minha memória detém-se aí. Mas não posso
jurar que não tenham regressado algum dia.
Aos poucos,
“os holandeses” foram caindo no esquecimento. Nunca cheguei a saber porque
vinham a Moura, de onde eram, nem o que faziam na vida. Muito menos sei, ou
saberei, porque deixaram de vir.
Recordações
distantes de factos pouco relevantes, mas que fizeram parte da meninice de
tantos de nós.
Crónica publicada em "A Planície" (1.2.2016)
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