O
livro de Camilo José Cela foi lido há mais de 40 anos, seguramente. Não mais
esqueci esta passagem, a mais tremenda de entre todas as das memórias de
Pascual Duarte:
“La
puerta de la cuadra que daba al corral era baja de quicio. Me agaché para entrar;
no se veía nada.
—¡To, yegua!
La yegua se arrimó contra el pesebre; yo abrí la navaja com cuidado; en esos
momentos, el poner un pie en falso puede sernos de unas consecuencias funestas.
—¡To, yegua! Volvió a cantar el gallo en la mañana.
—¡To, yegua!
La yegua se movía hacia el rincón. Me arrimé; llegué hasta poder darle una
palmada en las ancas. El animal estaba despierto, como impaciente.
—¡To, yegua!
Fue cosa de un momento. Me eché sobre ella y la clavé; la clavé lo menos veinte
veces…
Tenía la piel dura; mucho más dura que la de Zacarías… Cuando de allí salí
saqué el brazo dolido; la sangre me llegaba hasta el codo. El animalito no dijo
ni pío; se limitaba a respirar más hondo y más de prisa, como cuando la echaban
al macho”.
O
homem vingava com sangue a ferida irreparável que a égua causara na sua mulher.
A navalha é usada sem hesitações. A mentalidade mágica prevalece. Morta a égua,
o mal é varrido.
Voltei
a encontrar este mundo duro e arcaico anos mais tarde, no filme “Las hurdes.
Tierra sin pan” de Luís Buñuel. Nele se retrata a violência de vidas marcadas
pela miséria e pelo desconhecimento do que acontecia para lá do horizonte. A
cena da festa popular, em que os cavalos passam a correr pelo meio de uma praça
e o cavaleiro tem, à passagem, de arrancar a cabeça de um galo vivo, que está
pendurado pelas patas, é de uma crueza que as palavras são curtas para
explicar.
A
essa Espanha profunda chegou, no início da década de 50 do século XX, o
jornalista Eugene Smith. A reportagem, mais tarde publicada na “Life”,
permanece como o testemunho poderoso de uma época. Sentimos a pobreza dos
habitantes da Deleitosa (província de Cáceres) em cada uma das suas imagens.
Sentimos a ferocidade da repressão franquista no trio de guardas-civis que
olham para o horizonte, com uma expressão que não deciframos.
Não
é que Deleitosa fosse muito diferente de outras localidades raianas – ao
repassar as fotografias acho que há ali coisas parecidas com o “callejón” que
separava a Calle Calvo Sotelo da Calle del Corzo, em Paymogo e há miúdas que me
recordam a Aurélia, que morava na Calle Real (o que será feito da Aurélia?...)
– mas Eugene Smith só houve um.
Sentados
no sofá, olhando tranquilamente o écran, entre um café e a leitura do jornal, o
mundo antigo de Pascual Duarte parece irreal. Pelos nossos olhos perpassam
imagens de que foram testemunhas diretas três jovens artistas. As paisagens são
frugais, as pessoas têm expressões de aspereza e de dor permanente.
A única coisa que nunca consegui perceber
é a fantástica e precoce maturidade das suas obras. Eugene Smith tinha 31 anos
quando fotografou Deleitosa. Luis Buñuel rodou “Las hurdes” aos 33 anos.
Camilo José Cela escreveu La família de Pascual Duarte aos 26 anos.
As Hurdes ficam a 250 quilómetros de Moura,a Deleitosa a cerca de 230. Esse mundo antigo e violento é-nos próximo fidsicamente. E facilmente o entenderemos se, nas nossas próprias terras, recuarmos um século.
Crónica em "A Planície". A fotografia é de Eugene Smith.
O livro de Camilo José Cela foi lido há mais de 40 anos, seguramente. Não mais esqueci esta passagem, a mais tremenda de entre todas as das memórias de Pascual Duarte:
“La
puerta de la cuadra que daba al corral era baja de quicio. Me agaché para entrar;
no se veía nada.
—¡To, yegua!
La yegua se arrimó contra el pesebre; yo abrí la navaja com cuidado; en esos
momentos, el poner un pie en falso puede sernos de unas consecuencias funestas.
—¡To, yegua! Volvió a cantar el gallo en la mañana.
—¡To, yegua!
La yegua se movía hacia el rincón. Me arrimé; llegué hasta poder darle una
palmada en las ancas. El animal estaba despierto, como impaciente.
—¡To, yegua!
Fue cosa de un momento. Me eché sobre ella y la clavé; la clavé lo menos veinte
veces…
Tenía la piel dura; mucho más dura que la de Zacarías… Cuando de allí salí
saqué el brazo dolido; la sangre me llegaba hasta el codo. El animalito no dijo
ni pío; se limitaba a respirar más hondo y más de prisa, como cuando la echaban
al macho”.
O homem vingava com sangue a ferida irreparável que a égua causara na sua mulher. A navalha é usada sem hesitações. A mentalidade mágica prevalece. Morta a égua, o mal é varrido.
Voltei a encontrar este mundo duro e arcaico anos mais tarde, no filme “Las hurdes. Tierra sin pan” de Luís Buñuel. Nele se retrata a violência de vidas marcadas pela miséria e pelo desconhecimento do que acontecia para lá do horizonte. A cena da festa popular, em que os cavalos passam a correr pelo meio de uma praça e o cavaleiro tem, à passagem, de arrancar a cabeça de um galo vivo, que está pendurado pelas patas, é de uma crueza que as palavras são curtas para explicar.
A essa Espanha profunda chegou, no início da década de 50 do século XX, o jornalista Eugene Smith. A reportagem, mais tarde publicada na “Life”, permanece como o testemunho poderoso de uma época. Sentimos a pobreza dos habitantes da Deleitosa (província de Cáceres) em cada uma das suas imagens. Sentimos a ferocidade da repressão franquista no trio de guardas-civis que olham para o horizonte, com uma expressão que não deciframos.
Não é que Deleitosa fosse muito diferente de outras localidades raianas – ao repassar as fotografias acho que há ali coisas parecidas com o “callejón” que separava a Calle Calvo Sotelo da Calle del Corzo, em Paymogo e há miúdas que me recordam a Aurélia, que morava na Calle Real (o que será feito da Aurélia?...) – mas Eugene Smith só houve um.
Sentados no sofá, olhando tranquilamente o écran, entre um café e a leitura do jornal, o mundo antigo de Pascual Duarte parece irreal. Pelos nossos olhos perpassam imagens de que foram testemunhas diretas três jovens artistas. As paisagens são frugais, as pessoas têm expressões de aspereza e de dor permanente.
A única coisa que nunca consegui perceber é a fantástica e precoce maturidade das suas obras. Eugene Smith tinha 31 anos quando fotografou Deleitosa. Luis Buñuel rodou “Las hurdes” aos 33 anos. Camilo José Cela escreveu La família de Pascual Duarte aos 26 anos.
As Hurdes ficam a 250 quilómetros de Moura,a Deleitosa a cerca de 230. Esse mundo antigo e violento é-nos próximo fidsicamente. E facilmente o entenderemos se, nas nossas próprias terras, recuarmos um século.
Crónica em "A Planície". A fotografia é de Eugene Smith.
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