Quando este jornal estiver a sair está a
celebrar-se em Cuba o 66º. aniversário da tomada do poder pelos revolucionários
de Fidel Castro. Havana era, até então, uma banal extensão dos prostíbulos de
Miami. O governo de Fulgencio Batista (1901-1973) destacava-se por níveis nunca
vistos de corrupção e de incompetência. A opressão sobre o povo cubano era uma
realidade. Daí que a adesão da população tenha sido generalizada e que a
revolução tenha triunfado. Batista tomou o caminho do exílio. Morreu, em 1973,
na estância balnear de Marbella. Os seus seguidores espalharam o terror, onde
puderam, durante mais quatro ou cinco anos. Em meados da década de 60, mesmo
com a ajuda dos americanos, a contrarrevolução fracassava.
A ilusão de um marxismo caribenho,
romântico e independente, duraria pouco. Os americanos rapidamente hostilizaram
um regime que, de forma crescente, teve o apoio soviético. A primeira, ilusória
e curta, idade da revolução estava consumada. Durante cerca de duas décadas e
meia, Cuba resistiu de forma notável e conseguiu aquilo que quase não existe na
América Latina: elevados níveis de educação, cuidados de saúde e segurança. A
supressão de liberdades individuais foi um facto, mas pergunto-me, muitas
vezes, qual a liberdade dos mais de 30% de colombianos ou de 20 % de
brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza… E não falemos do perigo
urbano no México, na Guatemala ou nas Honduras.
Mas 1959 foi há 66 anos e já são poucos
os que têm memória da Cuba pré-Fidel Castro. Duas semanas em Cuba – andando à
solta, sem excursões organizadas, nem resorts nem idas a “sítios obrigatórios” –
deixaram-me impressões (não lhe chamarei opiniões, porque não sou especialista
no tema) sobre um País em mudança.
Do socialismo caribenho restam
meia-dúzia de “slogans” e uma população que vive à margem da militância
política. O embargo americano – uma monstruosidade sem pés nem cabeça – tornou
a economia num sistema de penúria, onde o que funciona passa para mãos estrangeiras
(como os “Habanos”, que hoje pertencem em 50% a investidores asiáticos). O
salário médio oficial é de cerca de 35 euros. Mas o turismo criou uma sociedade
de classes: os que têm meios e os que não têm nada. O frugal igualitarismo de
outrora foi-se e o abastecimento de energia (os hotéis e os que têm posses têm
geradores e têm luz) pareceu-me ser a face mais evidente dessa desigualdade.
A esperança e o sonho de outrora já não
são visíveis. Uma pessoa bem colocada, com quem pude falar, dizia-me ter a
convicção, que uma parte da estrutura política está a deixar “deslizar” o
sistema, de forma deliberada. Acredito sinceramente que assim seja. Até porque
os Estados Unidos são a grande miragem. Há bandeiras e bandeirinhas dos U.S.A.
por toda a parte. Parece quase provocatório, mas não se vê sinal de opressão
sobre os “atrevidos”.
Ao final de uma tarde luminosa subi ao
Memorial José Martí e coloquei-me muito perto do sítio onde Fidel Castro fazia
os seus discursos. Fidel não construiu qualquer “culto da personalidade” (terei
visto duas ou três imagens dele em locais públicos, não mais que isso), o que
me reforça a imagem que dele tinha: um homem e um líder de qualidade superior.
O sonho falhou? Quase. O nível de
educação e dos cuidados de saúde (até onde puderam resistir, neste último caso)
não têm comparação com qualquer outro ponto para baixo de El Paso. A segurança
urbana é total. Um dia deixará de ser assim. Nessa altura, outros emergirão.
Novos combates terão de ser travados. A América Latina, no meio das suas
enormes contradições, por entre os seus caudilhos, soube sempre criar soluções
libertadoras. Velasco Alvarado, Juan José Torres, João Goulart, Salvador
Allende, Omar Torrijos fazem parte desse grupo de homens de exceção. Outros
sonhos e outras cubas haverá.
Crónica em "A Planície"