“Ó não! Ele está a ver outra vez
aquela coisa do Bergman”. A frase foi dita em tom de lamúria, enquanto a sua
jovem autora cruzava a sala numa diagonal rápida. Ele sou eu. A Luísa acha que
não gosta de Bergman, mas um dia gostará. “Aquela coisa” é o filme “Morangos
silvestres”, que a Isabel queria ver, antes de ser derrotada por Hipnos.
“Morangos silvestres” é hoje apenas o
nº 63 no célebre ranking da “Sight and Sound”. Foi 10º na lista de 1972. O que faz uma lista, onde se ordenam os melhores
filmes de sempre? Muitos fatores, decerto: as sensibilidades de diferentes
gerações, orientações políticas, modificações na forma de percecionar a
estética cinematográfica, preocupações sociais etc. Isso é bem visível nas
oscilações, nas subidas e descidas de filmes, nos que emergem e nos que, depois
de conhecerem uma súbita popularidade, são votados ao esquecimento.
Fiquei sozinho, revendo o filme que
mais marcas me deixou. O desespero da Luísa ante aquela obra cheio de silêncios e angústias é
mais que compreensível. Isak Borg faz, numa só noite, uma viagem pela sua vida.
No verão polar a noite é cheia de uma luz difusa. Isak aproveita-a para ir de
carro em direção a Lund, onde receberá um grau honorário na universidade. Nos
locais por onde passa Isak revê o passado: o casamento frio, o amor de
juventude que se perdeu, as pessoas que já partiram. Na longa viagem, noite
dentro, a solidão de Isak é interrompida pelos sonhos e pelas recordações que
os sítios suscitam.
Vi “Morangos silvestres” quando tinha 18 ou 19 anos.
Talvez tenha sido cedo demais… Fui, ao longo da vida, revendo essa obra fascinante.
E pensando, muitas vezes, sobre o sentido do percurso que se trilha e das
opções que se tomam. Fui, também, sendo assombrado pelo rigor dos
enquadramentos, pelo sentido pictórico de Bergman, pelo domínio total da luz e
dos efeitos de claro-escuro. Muitas vezes tive dificuldade em entender o
cérebro por detrás da câmara de filmar. Um mediterrânico dificilmente pensa as
coisas daquela forma. Mas também é difícil de garantir que assim seja.
Na última cena do filme, Isak Borg emana paz. "A face de
Victor Sjostrom brilhava”, diria Ingmar Bergman anos mais tarde. Não é evidente que Borg, naquela paz tão
perto da morte, tenha encontrado as respostas que queria. Há perguntas sem
resposta evidente.
Daqui por uns anos voltarei a ver “Morangos
silvestres”. Talvez na companhia da Luísa.
Texto publicado ontem, em "A Planície". O final do filme é este:
1 comentário:
Deveras um belíssimo filme, vi-o já há uns anos bons mas a modos que este seu post me deu vontade de encetar a recolecção!
AbraÇalam,
R.
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