quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A VIAGEM DE ISAK

“Ó não! Ele está a ver outra vez aquela coisa do Bergman”. A frase foi dita em tom de lamúria, enquanto a sua jovem autora cruzava a sala numa diagonal rápida. Ele sou eu. A Luísa acha que não gosta de Bergman, mas um dia gostará. “Aquela coisa” é o filme “Morangos silvestres”, que a Isabel queria ver, antes de ser derrotada por Hipnos.

“Morangos silvestres” é hoje apenas o nº 63 no célebre ranking da “Sight and Sound”. Foi 10º na lista de 1972. O que faz uma lista, onde se ordenam os melhores filmes de sempre? Muitos fatores, decerto: as sensibilidades de diferentes gerações, orientações políticas, modificações na forma de percecionar a estética cinematográfica, preocupações sociais etc. Isso é bem visível nas oscilações, nas subidas e descidas de filmes, nos que emergem e nos que, depois de conhecerem uma súbita popularidade, são votados ao esquecimento.

Fiquei sozinho, revendo o filme que mais marcas me deixou. O desespero da Luísa ante aquela obra cheio de silêncios e angústias é mais que compreensível. Isak Borg faz, numa só noite, uma viagem pela sua vida. No verão polar a noite é cheia de uma luz difusa. Isak aproveita-a para ir de carro em direção a Lund, onde receberá um grau honorário na universidade. Nos locais por onde passa Isak revê o passado: o casamento frio, o amor de juventude que se perdeu, as pessoas que já partiram. Na longa viagem, noite dentro, a solidão de Isak é interrompida pelos sonhos e pelas recordações que os sítios suscitam.

Vi “Morangos silvestres” quando tinha 18 ou 19 anos. Talvez tenha sido cedo demais… Fui, ao longo da vida, revendo essa obra fascinante. E pensando, muitas vezes, sobre o sentido do percurso que se trilha e das opções que se tomam. Fui, também, sendo assombrado pelo rigor dos enquadramentos, pelo sentido pictórico de Bergman, pelo domínio total da luz e dos efeitos de claro-escuro. Muitas vezes tive dificuldade em entender o cérebro por detrás da câmara de filmar. Um mediterrânico dificilmente pensa as coisas daquela forma. Mas também é difícil de garantir que assim seja.

Na última cena do filme, Isak Borg emana paz. "A face de Victor Sjostrom brilhava”, diria Ingmar Bergman anos mais tarde.  Não é evidente que Borg, naquela paz tão perto da morte, tenha encontrado as respostas que queria. Há perguntas sem resposta evidente.

Daqui por uns anos voltarei a ver “Morangos silvestres”. Talvez na companhia da Luísa.

Texto publicado ontem, em "A Planície". O final do filme é este:

1 comentário:

Alor disse...

Deveras um belíssimo filme, vi-o já há uns anos bons mas a modos que este seu post me deu vontade de encetar a recolecção!
AbraÇalam,
R.