quarta-feira, 7 de outubro de 2020

MEMÓRIA DOS SÍTIOS E DOS NOMES

É um daqueles projetos que parece tudo menos provável. Nunca tal me tinha ocorrido antes de meados de 2018. A dada altura, achei importante fixar a memória dos edifícios de uma determinada instituição pública. Que, ao longo de quase 100 anos, tinha povoado todo o território português com as suas construções. A maior parte dos edifícios ainda está em uso, uns quantos foram vendidos, em dois ou três casos foram demolidos e deles temos apenas recordações em papel fotográfico.


Creio ser uma característica muito nossa, a do negligente ou deliberado esquecimento do passado. Queimamos arquivos com a maior descontração, derrubamos muralhas ou construções relevantes, apagamos os vestígios da nossa memória coletiva sem pestanejar, deixamos para trás obras escritas, ignoramos com a maior arrogância o património popular. Neste último caso, sem nos darmos conta da riqueza excecional que representa a diversidade dos modos de vida, das maneiras de falar, das ancestrais formas de construir. É, seguramente, um problema de educação e de cidadania. Ao qual não fomos capazes, até hoje de dar resposta. Sinto, naturalmente, responsabilidades profissionais neste domínio.


Voltando ao tema de início, pareceu-me importante registar as localizações, os desenhos e as autorias desses imóveis. Um trabalho que, creio, deveria ser levado a cabo noutras entidades. Não só ao nível académico (o de Joana Brites é de consulta obrigatória), mas com a finalidade de pública divulgação, de registo e de fixação da memória dos sítios e dos nomes.


Os 175 edifícios por onde fui passando têm uma memória desigual quanto ao seu estado de origem. Uns foram mais modificados que outros. Alguns estão espantosamente bem conservados e parecem de História recente. Os arquitetos da chamada Escola do Porto estão ausentes. Com exceção de um distinto projeto de Fernando Távora em Aveiro. Com uma ou duas exceções, os pós-modernos não aparecem. Ainda bem. Pelo País dentro, fui dando com uma verdadeira parada de estrelas. Há desenhos de Gonçalo Byrne, de Carrilho da Graça, de Hestnes Ferreira, de Nuno Teotónio Pereira, de Francisco Conceição Silva, de Porfírio Pardal Monteiro. Ou de outros menos conhecidos, como José Rafael Botelho ou como Chorão Ramalho. Ambos muito apreciados pelos da minha geração, refira-se. O Estado Novo deixou a sua marca de norte a sul. Cristino da Silva sobrevive em Castelo Branco. Dois nomes destacam-se neste panorama: António Reis Camelo e João Simões. Este último foi o autor do projeto do antigo Estádio da Luz, mas só o soube através de um amigo arquiteto. Um outro nome “perseguiu-me” meses a fio, sem qualquer pista, para além do nome em si, até descobrir que na secretária ao lado (!) trabalhava uma senhora com ligações à família. Trata-se do pouco conhecido e verdadeiramente talentoso Raul Martins, que na sua curta carreira (faleceu em 1934, aos 42 anos) desenhou o antigo Cinema Europa, o Jardim Cinema ou, para a Caixa Geral de Depósitos, os edifícios de Santarém, Póvoa de Varzim ou Angra do Heroísmo. Todos eles com profundas, e quase nunca boas alterações, feitas logo após o seu falecimento. Pode ser falha minha na pesquisa, mas não encontrei um só trabalho monográfico (tese de mestrado ou ensaio) sobre este arquiteto.


Quando terminar o périplo de oito semanas (no sábado, dia 3, que este artigo está a ser escrito no dia 30 de setembro) terei percorrido mais de 16.000 quilómetros de carro, mais uns 5.500 de avião, terei cruzado mais de 85 % dos concelhos do nosso País e feito cerca de 11.000 imagens. A missão estará cumprida quando o livro sair, em 2021. Ficará terminado este percurso, em nome da memória dos sítios, dos edifícios e dos nomes. Um domínio que tantas vezes negligenciamos, como se de uma ucronia se tratasse. E não é.


Texto publicado em "A Planície"



1 comentário:

luis tavares disse...

Grato pela referência ao meu avô Raul Martins, falecido em 1934.Foi responsável pelo projecto de muitas agências da CGD,como sabe. Contudo na época não havia grande preocupação de autorias...Veloso Reis Camelo que lhe sucedeu com Chefe da Repartição de Projectos da CGD viria a concluir algum dos seus projectos.