sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

COMO NASCEM OS SANTOS

A tentação de criar santos e beatos é longa e persiste até aos nossos dias. A fabricação de milagres implicava prodígios de imaginação. Cada época beatifica o que pode e como pode. Repito um texto publicado há anos:

As paisagens dos nossos campos e das nossas cidades, vilas e aldeias estão cheias de nomes de santos hoje desaparecidos do calendário oficial da igreja. Muito pouco se sabe sobre a maior parte deles: Santo Amador, São Barão, São Brissos, São Matias, Santo Aleixo, São Sesinando ou o extraordinário São Facundo fazem parte das tradições mais antigas de uma religiosidade popular onde o sagrado, o profano e o mágico se misturam. São santos sem presença no martirológio (catálogo dos mártires e santos), mas cuja existência e devoção não têm discussão para as comunidades que os acolhem.


As suas origens são obscuras e sempre envoltas em lendas, muitas vezes de contornos improváveis. Alguns deles, como São Facundo ou o São Barão, venerado nos campos de Mértola, estão certamente ligados a atos ou cultos de fertilidade. São os verdadeiros santos do povo, de uma devoção local que não desaparece. Em certos casos, o santo não tem representação física e elege-se outro com imagem e percurso reconhecido. É o que acontece em Santo Amador, onde se escolheu outro mártir (Santo Evaristo) para dar representação física ao que o não tinha.

Na transição do mundo romano para a Idade Média, a vida de homens cujo percurso os destacara de modo positivo numa comunidade era continuado após a sua partida deste mundo. Oferendas e orações faziam parte desse ritual, praticado junto ao túmulo. Daí à santificação era um passo curto. Ao longo da Antiguidade Tardia, generalizou-se a prática das sepulturas “ad sanctos”, junto aos santos. Procurava-se a proteção divina, das mais variadas formas. Os mais ricos, claro, levavam vantagem, e ficavam dentro das igrejas. Os outros procuravam fica o mais perto possível do espaço consagrado. Queriam, desse modo, ficar ao abrigo do Mal.

Para surpresa dos meus alunos de “Arqueologia Medieval” costumava dar um exemplo vivo de um fenómeno paralelo ao da santificação de um túmulo. E mostrava a sepultura de Jim Morrison, vocalista e mentor dos Doors, prematuramente falecido. A sua sepultura, no Père-Lachaise, em Paris, é objeto de peregrinação. Não se reza, mas canta-se junto à sepultura. Já lá vi devotos deixarem maços de cigarros, charros e garrafas de bebida intactas (tal como no antigo Egito se deixava comida para o defunto percorrer o mundo das trevas). Há inscrições de quem ali esteve e benfazejas frases de apoio ao ídolo. É Jim Morrison um santo do século XXI? Nem tanto. O exemplo é anacrónico? Também não. Há gestos e atitudes que se repetem. Século apos século. A proximidade dos que marcaram a nossa vida tende a ser prolongada pelo tempo. Do modo festivo que a sua vida justificava. Com o tempo, nascia o mito. E, depois, o santo.

De tal modo assim é que, nos últimos anos, não é possível chegar mesmo junto ao túmulo de Jim Morrison. Foram colocadas cancelas protetoras. Como as que, nas basílicas, separavam o altar do espaço restante.

Sem comentários: