segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O QUE ANDAMOS AQUI A FAZER???

Reproduzo na íntegra o texto do meu amigo e colega Carlos Fabião, sobre um anúncio de venda de uma casa, recentemente visto no google. A parte "engraçada" disto é gostarmos tanto, em Portugal, de dar ares de "país sofisticado, evoluído, de futuro etc.".


Estupefacção / Indignação:

As ruínas do teatro romano de Felicitas Iulia Olisipo foram identificadas em 1798, no contexto dos desaterros para a reconstrução da cidade de Lisboa, depois do grande terramoto de 1755. Numa época em que se afirmava o gosto pela arquitectura clássica, Francisco Fabri, arquitecto italiano o serviço da coroa portuguesa propôs no ano seguinte (1799) o embargo das obras de reconstrução naquela área e a conservação in situ das ruínas (a primeira proposta do género que se fez em Portugal). A longa conjuntura turbulenta e conflitiva da primeira metade do nosso século XIX inviabilizou o plano.
As ruínas do teatro jazeram quase esquecidas até aos meados do século XX, quando sofreram novas afectações, numa época em que já não estavam à vista.
Nos inícios da década de 60, começou a tentativa de valorização, conservação e divulgação das ruínas e a persistente batalha de Irisalva Moita na sua promoção, nem sempre com êxito.
Ainda assim, as ruínas foram classificadas como Imóvel de Interesse Público, por Decreto de 1967, e publicada a sua ZEP (Zona Especial de Protecção), por Portaria de 1969.
Os avanços e recuos continuaram, aparentemente porque nenhum responsável (?) político alguma vez entendeu que Lisboa é a única capital europeia (para além de Roma, bem entendido) que possui um teatro romano, ou seja, uma indiscutível mais-valia em múltiplas dimensões.
Finalmente, já neste século, em 2001, foi inaugurado o Museu do Teatro Romano de Lisboa. Um projecto modesto, face à dimensão da área abrangida pelo monumento, mas um excelente equipamento que poderia ser bom ponto de partida para, paulatinamente, se reconfigurar a área, de modo a valorizar essa magnífica pré-existência.
Lamentavelmente, reabilitação urbana em Lisboa é sinónimo de fazer tábua rasa das preexistências, conservando aqui e ali uns “apontamentos de memória histórica”, para apaziguar consciências. Nem vale a pena voltar a falar aqui do exemplo de Cartagena…
Mas este caso está para além de tudo o que se pudesse temer. Um Imóvel de Interesse Público, devidamente classificado, com ZEP publicada, é literalmente atropelado por um projecto imobiliário. Como foi possível? Como se licenciou?
Já não pergunto como pôde alguém propor-se a projectá-lo ou a fazê-lo, porque sabemos bem da desigual repartição do Bom Senso e Bom Gosto entre o Género Humano.
Como se admite que a memória histórica de uma cidade se venda assim, por bom preço, note bem, porque se está a pagar não somente o “loft”, mas a memória histórica, a alma, a dignidade da capital do país!...
Amargamente, veio-me à memória um velho (?) tema de Sérgio Godinho: O Charlatão.
“Na ruela de má fama, faz negócio o charlatão (…) entre a rua e o país vai o passo de um anão (…) e o trono é do charlatão”…
Estávamos então em ditadura, agora em democracia, o trono voltou a ser do charlatão.
Quando uma cidade e um país estão dispostos a vender a sua herança cultural, memória histórica, alma e dignidade, sendo somente questão o preço, algo vai mal.
Pela minha parte, pergunto-me: o que ando eu aqui a fazer?

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