terça-feira, 1 de agosto de 2023

PORQUE DIZEMOS ACARRO?

Estavam três amigos nossos, encostados uns aos outros, à esquina do "Pires e Nunes". Protegiam-se do sol, numa tarde de Festa de Nossa Senhora do Carmo. O estado de embriaguez era notório. O outro amigo com quem eu descia a rua atirou um "atão o que é 'tão fazendo aí acarrados?". O comentário deu gargalhada. Eles ficaram encostados, acarrados. Nós continuámos, em direção à Praça.

 

A palavra acarro, embora meio "estranha", nunca me despertara particular curiosidade. Até ao dia de dezembro de 1991 (uma sexta-feira, 13) em que entrei na livraria Livre Service, na Av. Allah Ben Abdellah, em Rabat. Num escaparate estava um livro de um autor francês, Pierre-Yves Bertrand, intitulado "Les noms des plantes au Maroc", com a origem local, berbere, dos nomes das plantas. Às voltas com a redação de uma tese de mestrado, que ainda tardaria a ver a luz do dia e que tinha a alimentação como uma das áreas de estudo, folheei o livro. Estaquei na página 78. As palavras "figo" e "figueira" tinham como tradução, numa das variantes do berbere, AQARRU. O livro remetia ainda para um clássico da etnologia norte-africana, "Mots et chores berbères", publicado em 1920 por Emile Laoust. Que li mais tarde, e onde se confirmava essa informação.

 

A palavra não mais me largou. Fui à procura, com dificuldade, de outras explicações. Encontrei no Vocabulário de Rafael Bluteau (1638-1734), publicado em 1712: "ACARRADO - Propriamente se diz das ovelhas quando no abrazado da calma se chegão humas às outras (...)". Pois, muito bem. Explicava-se o significado da palavra, mas não a sua origem.

 

Fiquei, desde então, convencido da ancestralidade e singularidade do nosso “acarro”. E, embora possa estar equivocado, fiquei também com a convicção que a palavra entrou na língua portuguesa por influência berbere. E, ainda, que há uma ligação estreita entre a sombra densa da figueira e a imagem dos animais que, encostados uns aos outros, se protegem da dureza do sol sob a copa de uma árvore.

 

A palavra tem uma mancha geográfica limitada (Alentejo e Beira Baixa, tanto quanto julgo saber) e está hoje em vias de extinção, uma vez que o progressivo abandono dos campos faz com que a palavra deixasse de ter sentido. Hoje promovem-se “Cursos de Introdução ao Maneio Holístico e Planificação Avançada do Pastoreio”. Não tarda muito formar-se-ão professores doutores pastores. Mas a ligação ao sentido telúrico das coisas ter-se-á perdido.

 

Cada vez menos jovens conhecem o significado de palavras como acarro ou acarrado. Palavras como esta, tal como “cace”, não existem no meio urbano. Estão fora dos dicionários formais. Mas fazem parte da nossa identidade mais funda. À qual regressamos sempre. E da qual nunca nos esquecemos.


Crónica em "A Planície"

Ó árvore que irrompes da tua secura / suportando o penoso desdobrar de teus ramos / amaldiçoada / ofereces ainda a doçura de teus frutos / a sombra de tuas folhas / a firmeza do teu apego à terra (Ana Hatherly)
























Fotografia: Francisco da Vide in http://fotografosdeelvas.blogspot.com

2 comentários:

Anónimo disse...

Já ouvi também a expressão: estar o gado no "acarradouro"! Que é como quem diz, protegido do sol!

Anónimo disse...

Cace concha da sopa. Acarrado quando a febre e alta e se fica naquele torpor febril. Já não uso nem uma nem outra. Acarrado nunca usei mas ouvia em família quando eu dada a grandes febres ficava "acarrada"