quinta-feira, 26 de abril de 2012

O BORGES

A cara do senhor que me atendeu no restaurante era vagamente familiar. Mas não mais que isso. Alguém referiu, ao meu lado, que era um dos donos do “Borges”. Aí sim, ligou-se a máquina do tempo, o cabelo do senhor ficou mais escuro, as rugas desapareceram e ficou à minha frente, por artes mágicas, o homem que servia imperiais ao balcão do Borges. A cervejaria nada tinha de especial, a não ser a afabilidade dos empregados, que aturavam sorridentes a impertinência da juventude de Letras, e o facto de ficar mesmo à saída da Alameda da Universidade. O Borges tinha um estranho íman, que nos puxava lá para dentro, só para espreitar, só para ver se havia alguém. Fatalmente, havia alguém. Assim foi, entre 1981 e 1986.

A sala de entrada era o grande ponto de encontro dos alunos da faculdade. Do lado esquerdo ficava o balcão. À direita, havia filas de mesas, encostadas umas às outras, para rentabilizar o espaço. Isso diminuía a intimidade das conversas, mas ninguém ía para o Borges namorar. As séries de imperiais e de tremoços desfilavam por entre discussões mais ou menos absurdas sobre o futuro da investigação, sobre a falta de saídas profissionais, sobre a entrada de Portugal na CEE. Discutiam-se os livros comprados na livraria da esquina. Passei lá muitos finais de tarde, na companhia de colegas que, por vezes, voltei a encontrar muitos anos depois. Alguns tornaram-se pessoas muito importantes, que ganharam tiques e pose e que falam com um tom de voz que cheira a Poder. Nunca lhes recordo esses dias, não vão eles ficar embaraçados. 

O João abominava o Borges, que classificava como “espelunca”. Não era tal, mas o João às vezes tinha coisas assim e só lá fomos almoçar uma vez. Um dia de grande azar, porque encontrou uma mosca no meio do arroz de polvo. Foi a única mosca que vi no Borges, e logo morta, e fiquei convencido que os empregados sabiam da opinião do João sobre o Borges e lhe semearam a mosca no prato… 

Não sei se o sítio ainda existe. Se existir não entrarei. Com um pouco de sorte não terá sido transformado num “fast-food”. Com mais sorte ainda, haverá lá dentro um sortido de estudantes despenteados, discutindo coisas absurdas. Não é sítio para homens grisalhos. Cabelos brancos só detrás do balcão, onde pontificarão, se o sítio existir e não for um “fast-food”, empregados antigos, dispostos a aturar o barulho da juventude. E, talvez, com um “stock” de moscas mortas para alvejar clientes impertinentes.


Texto publicado em "A Planície" (1.4.2012)
Ao tentar copiar uma fotografia - a única que encontrei na net- com a fachada atual do Borges a imagem "desconfigurou", creio que é assim que se diz. A imagem ficou com sobreposições e fantasmas. É sempre assim quando se tenta recuperar o passado, não é?

2 comentários:

Jose Mariz disse...

Belas e claras memórias. Deixa-me acrescentar, à livraria da esquina, a da Bertrand, o sr. Vasconcelos (não sei se é do teu tempo) a retirar da gaveta os livros que não podia pôr na montra... O "Borges" ainda existe, refinado, claro, mais para profs da universidade e miúdos do Colégio Moderno, comensais. Mas o sr. Paulo continua o mesmo e reconhece-me como sôtor, 30 anos depois, o que não deixa de me sensibilizar. Mudam-se os tempos e os lugares, mas nem tudo são tristezas.

Lucrecia disse...

Lindas lembranças. Mais lindo ainda: "A imagem ficou com sobreposições e fantasmas. É sempre assim quando se tenta recuperar o passado, não é?"
Verdade.