domingo, 1 de abril de 2012

QUEIJO FATAL

Fiz uma triste figura, no longínquo dia da minha adolescência em que comprei, na Feira do Livro, Três homens num bote, de Jerome K. Jerome.

Entrei para o combóio e comecei a folhear o livro. Quase de seguida, comecei a rir, primeiro discretamente, depois às gargalhadas. Foi assim durante 25 minutos, até à estação de Queluz, ante o olhar desconfiado de outros passageiros. Já uma vez transcrevi aqui uma das passagens de Três homens num bote, com a qual me identifico profundamente (v. aqui).

Aqui fica o episódio do queijo:


Jorge propôs ainda para o pequeno almoço ovos e toucinho, que são fáceis decozinhar carne fria, chá, pão, manteiga e compota. “Para o almoço - disse ele - poderíamoslevar bolachas, carne fria, pão, manteiga, compota - mas nada de queijo”. O queijo, tal como o petróleo, invade tudo. Toma conta de um barco inteiro. Espalha-se na despensa e dá um gosto a queijo a tudo o que lá está. Chega-se a não saber se se está a comer torta de maçã, salsicha de Francfort ou morangos com leite. Tudo nos parece queijo. O queijo tem um cheiro forte de mais. Lembrei-me logo dum amigo meu que tinha comprado dois queijos em Liverpool. Eram uns belos queijos, moles e redondos, e que espalhavam em volta um aroma da força de duzentos cavalos-vapor, a três quilómetros de distância, e deitava um homem por terra a duzentos metros. Eu estava então em Liverpool, e o meu amigo perguntou-me se não me importava de levar os queijos comigo para Londres, porque ele não voltaria senão daí a um ou dois dias, e parecia-lhe que aqueles queijos não se podiam guardar muito mais tempo.

“- Mas com muito prazer, caro amigo, com muito prazer” - respondi-lhe eu. Fui buscar os queijos e meti-me com eles num trem. Esse trem era um carro velho, puxado por uma pileca sonâmbula, esquelética e vagarosa, que o seu proprietário, no calor da conversa, chegou mesmo a qualificar de cavalo. Pôs os queijos no tejadilho, e partimos numa velocidade que teria feito honra ao mais rápido de todos os cilindros a vapor até hoje construídos e, de princípio, tudo se apresentou tão alegre como um dobrar a finados. Mas quando voltámos a esquina, o vento trouxe uma baforada do cheiro dos queijos, em cheio, sobre o nosso ginete. O odorífero bafo acordou-o bruscamente e, com um relinchar assustado, tomou balanço e largou à velocidade de cinco quilómetros à hora. O vento continuava a soprar na mesma direcção e antes de chegar ao fim da rua ele tinha já alcançado uma velocidade de sete à hora, deixando bem longe, atrás de si, os doentes e as senhoras velhas e gordas. Na chegada à estação, foram necessários dois carregadores, além do cocheiro, para aguentar o corcel, duvido mesmo que o tivessem conseguido, se um dos homens não mostrasse a presença de espírito bastante para lhe atar um lenço às ventas e queimar papel-de-arménia. Tirei o meu bilhete e avancei orgulhoso no cais, com os meus queijos, enquantoas pessoas se afastavam respeitosamente de um lado e de outro. O comboio ia cheio. Tive de subir para um compartimento onde já estavam sete pessoas. Um senhor velho e rabugento protestou mas eu entrei e, pondo os meus queijos na rede, instalei-me com um amável sorriso, dizendo que estava um dia muito quente. Passados alguns minutos, o senhor de idade começou a mostrar-se agitado.

“- Está aqui tão abafado” - disse ele.

“- Até falta o ar” - respondeu o seu vizinho.

Então puseram-se ambos a fungar. À terceira foram tomados de uma sufocação, levantaram-se sem dizer uma palavra. Depois levantou-se uma senhora gorda e disse que era vergonhoso faltar assim ao respeito a uma honesta mãe de família. Carregada com uma mala e oito embrulhos, saiu também. Os quatros viajantes restantes aguentaram-se alguns momentos mas, por fim, um senhor de ar grave, que estava sentado a um canto e que, pelo seu fato e aspecto geral, parecia pertencer a alguma organização de cerimónias fúnebres, disse que aquilo lhe fazia lembrar uma criancinha morta. Ao ouvirem isto, os outros três viajantes precipitaram-se todos ao mesmo tempo para a porta, esbarrando uns nos outros. Sorri ao senhor fúnebre e disse-lhe que, felizmente, o compartimento ficaria todo só para nós. Sorriu-se por sua vez, com ar amável, e respondeu que muita gente tomava a sério coisas sem importância. Mas no decorrer da viagem começou a mostrar-se extraordinariamente deprimido por isso, quando chegámos a Crewe, convidei-o a vir comigo ao bufete beber um copo de cerveja. Aceitou. Dirigimo-nos ao bufete, onde gritámos e vociferámos e batemos com os nossos chapéus de chuva durante um quarto de hora. Por fim apareceu uma rapariga que nos perguntou se desejávamos alguma coisa.

“- O que toma o senhor?!” -perguntei ao meu amigo.

“- Tomo quatro doses de conhaque, se faz favor, menina” - respondeu ele.

Depois de beber à farta, foi-se embora tranquilamente e subiu para outro compartimento, o que eu achei bastante reles. A partir de Crewe, apesar de o comboio ir apinhado, fiquei absolutamente só. Nas paragens das diferentes estações, os passageiros, quando viam o meu compartimento vazio, precipitavam-se para o tomarem de assalto. E eu ouvia-os gritar: “Aqui está o que nos convém, Maria anda cá, temos aqui muitos lugares! - Ora ainda bem, Tom,vamos lá!” E corriam todos, carregados com pesadas malas, empurravam-se em frente da porta para serem os primeiros a entrar. Um deles abria a porta, subia ao estribo ... e, titubeando, caía para trás nos braços daquele que o seguia, vinham todos e, depois de cheirarem, largavam a fugir e iam amontoar-se noutro compartimento ou pagavam o excesso e iam para a primeira classe.

Na estação de Euston desci e levei os queijos a casa do meu amigo. Ao entrar na sala, a mulher dele respirou fundo. Depois perguntou-me: “- O que foi? Não me esconda a verdade, mesmo que tenha acontecido alguma desgraça”. E eu respondi: “- São dois queijos. Tom comprou-os em Liverpool e pediu-me que os trouxesse para aqui”. E acrescentei que certamente ela havia de compreender que eu não tinha qualquer responsabilidade naquela história. Respondeu-me que estava certa disso, mas que tinha duas palavras a dizer ao Tom, quando ele voltasse. O meu amigo ficou em Liverpool mais tempo do que contava, e três dias mais tarde, como ele não tivesse ainda voltado, a mulher veio visitar-me. Perguntou-me: “- O que lhe disse o Tom a respeito dos queijos?” Respondi-lhe que recomendara que os conservassem em sítio fresco e que ninguém deveria tocar-lhes. Ela continuou: “- Há realmente muitas probabilidades de que ninguém lhes toque”. Ele tinha-os cheirado? Era, no meu entender, muito provável, e acrescentei que Tom parecia fazer muito gosto nos queijinhos.- Pensa que ele ficaria muito contrariado - perguntou ela - se eu desse vinte xelins a um homem para que mos fosse enterrar longe daqui? Respondi-lhe que, se o fizesse, não tornaria a ver o seu marido rir. Ocorreu-lhe uma ideia. Propôs-me “- Importava-se de os guardar até o meu marido vir? Eu mandava-os vir para sua casa”. “- Minha senhora - respondi eu -, eu próprio gosto muito do cheiro do queijo, e a viagem que fiz há dias com eles ficar-me-á sempre gravada no espírito como um feliz remate de umas férias agradáveis. Mas, neste mundo, temos que pensar também nos outros. A senhora sob cujo tecto tenho a honra de habitar é viúva e, muito possivelmente, é também órfã. Tem uma maneira forte, direi mesmo eloquente, de se opor a que, como ela diz, “façam pouco dela”. A presença dos queijos do seu marido nesta casa, receio bem, dar-lhe-ia a impressão de que estavam a fazer pouco dela e eu não quero que possam dizer que abusei da viúva e da órfã”. “- Bem! - prosseguiu a mulher do meu amigo, levantando-se. - Só me resta pegar nas crianças e ir com elas para um hotel, enquanto os queijos não são comidos. Desisto de viver mais tempo na mesma casa com eles”. Cumpriu a sua palavra e deixou a casa entregue à mulher a dias. Esta, quando lheperguntaram como podia resistir àquele cheiro, respondeu “Qual cheiro?” e quando lhe puseram o nariz em cima dos queijos e lhe disseram que cheirasse, confessou que sentia um leve aroma a melão. Donde concluíram que ela não corria perigo por viver naquela atmosfera, e deixaram-na lá ficar. A conta do hotel atingiu cinquenta libras esterlinas e o meu amigo, depois defazer os cálculos, verificou que os queijos lhe tinham saído a oito xelins e seis pence por meio quilo. Acrescentou que adorava realmente queijo, mas que as suas posses não lhe permitiam tal estravagância. Deitou os queijos à água no canal, mas foi obrigado a pescá-los, porque os donos das embarcações queixaram-se. Disseram que o cheiro quase os fazia desfalecer. Depois disso, o meu amigo levou-os uma noite escura para o cemitério da paróquia, e deixou-os lá ficar. Mas o coveiro descobriu-os e fez uma zaragata terrível. Alegou que era umapartida que lhe tinham feito para o privarem do seu ganha-pão, acordando os mortos. Por fim, o meu amigo acabou por se ver livre deles levando-os para uma terra à beira-mar e enterrando-os na praia, o que deu ao local uma fama imensa. Os banhistas diziam que nunca tinham reparado na leveza e pureza daquele ar e, durante muitos anos, encheu-se a terra de pessoas fracas e doentes dos pulmões.




Nada melhor para ilustrar esta história que o célebre gag do queijo corso de "Astérix na Córsega"... Já tive um episódio semelhante com um queijo da Serra da Gardunha, que ficou fora da caixa durante um fim-de-semana no verão. A casa não foi pelos ares, mas as janelas tiveram de ficar abertas de par em par durante 24 horas.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Esta, quando lheperguntaram como podia resistir àquele cheiro, respondeu “Qual cheiro?” e quando lhe puseram o nariz em cima dos queijos e lhe disseram que cheirasse, confessou que sentia um leve aroma a melão."

Ia tendo uma apoplexia! ahahah

Lucrecia disse...

Muito divertido!Adorei o título.