Chegou-me, há pouco, a triste notícia do falecimento de Pierre Guichard, nome indispensável da História e da Arqueologia do al-Andalus. Ouvi falar dele, pela primeira vez, em 1982, quando Cláudio Torres considerava obrigatória a leitura de Al-Andalus: estructura antropológica de una sociedad islámica en Occidente. Curiosamente, o que Guichard defendia era, em essência, o oposto do que Cláudio Torres sustentava. O que estava ali em causa eram os mecanismos e os processos de islamização. Um pequeno ensaio sobre o castelo de Perpunchent foi, para mim, exemplo da argúcia e da capacidade de leitura, análise e explicação de uma sociedade a partir de uns muros e de umas torres.
Só o conheci pessoalmente em 1992, num célebre colóquio da Castrum, onde estiveram presentes muitos que já nos faltam, e que farão sempre falta: Manuel Acién, Riccardo Francovich, Miquel Barceló... A apresentação que mais me impressionou, pelas suas implicações histórico-antropológicas foi uma da inefável dupla belga Matthys - De Meulemeester (ambos também já desaparecidos) sobre Cabezo de Cobertera. O cruzamento entre arqueologia e etnografia tornava-se claro e a função do "agadir" passava ser uma evidência. O que Guichard apontava era cada vez mais visível. Não me atrevi, claro, a dirigir-lhe a palavra. O Cláudio convidou-o a ir a Mértola. E ele "claro que sim", sem perceber muito bem a razão do convite, nem se dando conta do estatuto que tinha nem do respeito que o seu nome suscitava em Portugal. Cá esteve, em 1993, participando num colóquio no salão na Junta de Freguesia de Mértola.
Entre outubro de 1996 e junho de 2005 fui-me cruzando com o Prof. Pierre Guichard inúmeras vezes, enquanto a minha tese ia, desordenadamente, ganhando forma. Ao longo desses anos fui consolidando uma imagem. A do investigador íntegro e sério, de uma timidez que se tornava divertida, de tão radical, a do professor tolerante e amigo dos seus orientandos. "Vous-êtes où, dans votre thèse, Santiagô?", até me fazer prometer (o que cumpri), que entregaria tudo num prazo de dois meses... A tese nunca teria chegado ao fim sem os seus comentários, as suas críticas e a sua postura ética e científica, aceitando muitas perspectivas bem distantes das suas. Tinha um mal disfarçado orgulho nos seus melhores discípulos, como Yassir Benhima, Tariq Madani ou Jean-Pierre Van-Staëvel.
Em 2006 convidei-o para a apresentação da edição da tese em pleno Castelo de S. Jorge. Encontrei-o depois disso num colóquio patrocinado pelo Fondation Schlumberger (numa herdade na Provença tão grande que tinhamos de andar de carro entre os chalés e o edifício principal, o que fez com que o distraidíssimo Prof. Guichard enfiasse o seu Twingo numa valeta, a altas horas da noite; ante as piadas dos colegas, habituados a tais "proezas", desculpava-se encolhendo os ombros "je ne sais mas qu'est-ce qui c'est passé..."). Vi-o pela última vez, num encontro na Nova, há 5 anos. Estava siderado com o facto de eu ser presidente de câmara.
Em 2010, intitulei uma exposição organizada em Silves "Do Gharb ao Algarve - uma sociedade islâmica no ocidente". Foi uma forma quase explícita de homenagear um homem a quem a História do al-Andalus tanto deve. E a quem tantos de nós tanto devemos pelo que nos ensinou como forma de estar na vida científica.
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