segunda-feira, 12 de abril de 2021

A NECESSIDADE DE "LISBOA ISLÂMICA"

Saiu anteontem, no "Público", um texto sobre a projetada exposição "Lisboa Islâmica". A qual me parece, ainda mais agora, absolutamente necessária.

Li algures que a hora é de tratar dos monumentos e que as exposições ficam para depois. Uma perspetiva que merece a minha rejeição. Mal de nós se estivermos à espera de recuperar edifícios para depois promover iniciativas de estudo e de divulgação... É bom que se perceba que um e outro aspetos são indissociáveis. Às vezes pergunto "mas onde diabo estudaram?".

Segue, mais abaixo, o texto que escrevi para o "Público".












Teve lugar no passado dia 8 a apresentação pública de um curto vídeo intitulado Percorrendo a cerca moura, que está disponível nas páginas do Gabinete de Estudos Olisiponenses no Facebook e no YouTube. O perímetro da cidade medieval anterior à Reconquista está bem definido desde o estudo que o genial Augusto Vieira da Silva (1869-1951) publicou, pela primeira vez, em 1899. A muralha pode ser revisitada e reconhecida mas, do ponto de vista físico, só alguns dos seus troços sobreviveram à passagem dos séculos. Da Porta do Ferro, a mais magnificente de todas, resta o sítio — sabemos que ficava no Largo de Santo António — junto à Sé e a descrição de Al-Himyari. Sabemos que era “encimada por arcos sobrepostos que assentam em colunas de mármore, por sua vez apoiadas em embasamentos de mármore”. A muralha ao longo do rio ora se esconde, ora aparece, em sítios como a Casa dos Bicos ou o Eurostars, um hotel com museu dentro. Há mais muralha na base da Igreja de Santa Luzia ou nas traseiras da Igreja do Menino Deus.

Os 20 mil habitantes que Lisboa teria no período islâmico faziam dela uma urbe importante. Mas não ao nível de uma Córdova ou de uma Sevilha.

Este percurso em volta das muralhas, retomado com a ajuda de um drone (o que não pode ser visto do solo é percorrido a partir do ar), constituiria parte de uma exposição sobre Lisboa Islâmica, da qual assumi o comissariado e que, sob a responsabilidade da Câmara Municipal, deveria ter sido montada em 2020. A pandemia falou mais alto e o projeto foi adiado. A exposição comportaria cinco núcleos: um sobre o território de Lisboa, outro sobre a cidade em si, um terceiro referente à conquista de 1147, mais um sobre os “prolongamentos” medievais e modernos (das mourarias aos contactos com a pirataria norte-africana), fechando com um setor final onde se conjugariam as imagens do castelo / coração de al-Ushbuna que nos são devolvidas pelas artes plásticas com a presença das comunidades muçulmanas atuais.

Rever a cidade islâmica, com drone ou sem ele, é importante? Decerto que sim, como a polémica em torno das ruínas na Sé de Lisboa veio, coloridamente, demonstrar. A investigação histórica e arqueológica sobre a cidade, conduzida pelo Gabinete de Estudos Olisiponenses, pelo Centro de Arqueologia de Lisboa, pela Direção-Geral do Património Cultural ou resultado de muitas intervenções realizadas no âmbito da arqueologia empresarial, alargaram em muito o conhecimento que temos da cidade islâmica. É, sobretudo, essencial relê-la de uma forma global, em termos territoriais. Não só a fortaleza em si, mas olhando mais além, e abrangendo na explicação do sítio os campos à sua volta, a riqueza do Tejo e o poder atrativo da mineração. Quantos lisboetas saberão da existência de um ribat (um posto fortificado na costa, onde se rezava e de se preparava o combate pela fé) no Alto da Vigia, junto à Praia das Maçãs? Quantos dos que passam pela Praça da Figueira sabem que, uns metros mais abaixo ficava um bairro ribeirinho, com ruas e casas ordenadamente dispostas? Ou que no perímetro militar da Serra da Carregueira havia minas descritas pelos autores do período árabe?

Mas uma cidade não é um somatório de escavações — por muito importantes que elas sejam para a explicação da Lisboa islâmica —, nem isso por si só nos dá uma leitura ampla da cidade. É certo que a redescoberta da cidade tem passado por essas intervenções, e por releituras como a tese, infelizmente pouco conhecida fora do âmbito académico, de Manuel Fialho Silva. Mas é importante ir mais além. Depois da Reconquista, a voz dos almuédãos foi esmorecendo, até desaparecer de todo no final do século XV. Mas, ainda assim, ao longo de mais de 300 anos, o árabe continuou a ser língua corrente em Lisboa. A lápide funerária de al-Abbas Ahmad, datada de 1398, é apenas mais uma evidência da presença da língua árabe e da religião muçulmana na mouraria da cidade. A expulsão da minoria moura não faria desaparecer o bairro da toponímia da cidade. Tal como não desapareceria uma permanente ligação ao outro lado do sul. Os contactos tornaram-se, de forma crescente, mais agressivos. A memória dos cativos, e os pesados resgates feitos no Norte de África, tornaram a ligação entre Lisboa e o mundo islâmico um domínio de afastamentos e de tensão.

Até há pouco tempo assim foi. A imagem de Lisboa islâmica resumia-se ao episódio da Reconquista, à recordação da mouraria e a algumas generalidades sobre “os árabes”. Por esse motivo, a exposição terminaria (terminará?) com um excerto do filme Lisboetas, de Sérgio Tréfaut. Numa improvisada mesquita, algures às portas da Mouraria, o imam recorda o passado da cidade e que, naquele mesmo sítio, há 500 anos, também se orava a Alá e que a realidade de Lisboa era outra. A prédica do imam, no meio de muçulmanos recém-chegados à cidade, leva-nos a um eterno retorno e quase ao ponto de partida. Imagens dessas comunidades ainda recentes no panorama de Lisboa dariam expressão física a uma realidade que se constrói em permanência.

Talvez valha a pena recordar que o príncipe Sigurd, ao passar por Lisboa no início do século XII, descrevia a cidade como meio cristã, meio pagã (no sentido de muçulmana, claro está). Nove séculos passaram. A diversidade faz parte da matriz de Lisboa. Está na hora de retomar e de clarificar esse discurso. Por esse motivo, mas não apenas por ele, é necessário que se retome o projeto de exposição sobre Lisboa islâmica.

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