A estrada era um combóio de curvas e contracurvas, assim como as curvas da Vaquinha, só que nunca mais acabavam. Foi aí que fizémos um pião, saímos da estrada e o semieixo do Ibiza soçobrou. Pelo menos alguém disse que era o semieixo e eu acredito, que remédio, embora não fizesse ideia do que fosse um semieixo. Que o carro ficou parado e não mexe mais, lá isso ficou. Deus deve existir porque poucos minutos depois apareceu um reboque, o que fará um reboque nas curvas de Moulay Idriss aquelas horas da noite para além de rebocar Ibizas com o semieixo partido? É coisa que nunca saberei.
Foi assim, com um Ibiza assente nas rodas da frente, andando às arrecuas, focinho no chão e rabo no ar, e nós gelados de frio em cima do reboque, que chegámos a Meknes. Foi assim que desembarcámos à frente do EXCELSIOR, melhor dizendo do XLCELSIOR, porque o E há muito tinha caído, deixando o lugar vazio na fachada pardacenta e suja. Foi assim que entrámos no XCELSIOR e reservámos os quartos e fomos a correr para o restaurante da frente afogar as mágoas em cerveja e merguez. Ainda o merguez não tinha chegado à mesa e já duas mocetonas (com uns bíceps e umas coxas que fariam inveja ao Mike Tyson) se aproximavam do juke-box. Escolheram Julio Iglesias e entre meneares de ancas – provocando uma deslocação de ar próxima da tempestade tropical – e olhinhos tentavam fazer pela vida. O Joaquim jurava que elas eram da selecção de halterofilia de Marrocos, mas nós não tínhamos bem a certeza. Não demos troco e elas foram-se embora disparando um insulto qualquer. Aí o Adballah levantou-se aos berros, a coisa quase a dar para o torto, a gente a segurar o Abdallah e ele chateado como um raio “as gajas dizem que somos maricas”, o Abdallah a insultá-las em português, eu e o Rui a segurá-lo “deixa lá as moças”, enquanto elas desapareciam pelas traseiras do restaurante.
Para a noite ser perfeita só faltava mesmo a dormida no XCLESIOR. “Tout va avec”, dizem os franceses. Claro que sim. Depois do Ibiza com o semieixo partido, do reboque vindo de nenhures nas curvas da Vaquinha de Moulay Idriss, das culturistas do restaurante só faltava o resto. O XCLESIOR não nos desapontou. Os lençóis não eram mudados há várias décadas, talvez mesmo desde a noite da inauguração e tinham testemunhos abundantes da actividade frenética do local. Nem pensar em meter-me ali. Enrolei-me na coberta e preparei-me para uma noite gelada. Não tive tempo disso. O concerto dos quartos vizinhos, entrecortado pelas torneiras a abrir e a fechar e por momentos de silêncio, não dava tréguas. Lá para as quatro da manhã, uma barulheira medonha no corredor. Passos, gritos, o som de uma garreia. Coisa séria, porque ouvia-se bater no duro. Seriam as pugilistas do restaurante da frente? Por duas vezes a porta do meu quarto fez as vezes de cordas de ringue. “Se os gajos entram pelo quarto dentro, o que raio faço?”.
Às seis espreitei, receoso, o corredor. Um rasto de sangue ao longo do chão não deixava dúvidas em relação à violência do combate. Voltei ao quarto. O estado da banheira competia com o dos lençóis, pelo que optei por um rápido e fresco duche com as peúgas calçadas. Saímos pouco depois, num respeitoso silêncio, prometendo guardar segredo.
Não voltei a Meknes desde esse frio Novembro de há muito tempo. Não faço a mínima ideia de onde ficará o XCELSIOR. Tenho, contudo, a quase certeza de que não terá mudado de ramo. O que será feito das moças não imagino sequer. O Rui jura tê-las visto a alinhar pouco depois pela selecção de rugby da Nova Zelândia mas ele nessas coisas não é de fiar. O Ibiza era vermelho e tinha a matrícula UD-23-95. Recuperou bem da fractura no semieixo e morreu de velho.
Texto publicado no jornal A Planície de 1 de Maio de 2008
Olympia é um celebérrimo quadro de Édouard Manet (1832-1883). Foi pintado em 1863 e causou na época enorme escândalo. Claro que o tema das odaliscas tem precedentes e Manet foi buscar inspiração à tradição renascentista. O que chocou a burguesia da época foi esta representação, carregada de realismo, sensualidade e luxúria, de uma prostituta da alta sociedade. As mesmas, as mesmíssimas, mulheres que os chocados visitantes frequentavam. O Presidente francês Félix Faure que o diga…
A respeito deste último afirmaria Clemenceau "il voulait être César, il ne fut que Pompée". As palavras têm duas leituras. Poderia traduzir mas não me atrevo a explicar.
Foi assim, com um Ibiza assente nas rodas da frente, andando às arrecuas, focinho no chão e rabo no ar, e nós gelados de frio em cima do reboque, que chegámos a Meknes. Foi assim que desembarcámos à frente do EXCELSIOR, melhor dizendo do XLCELSIOR, porque o E há muito tinha caído, deixando o lugar vazio na fachada pardacenta e suja. Foi assim que entrámos no XCELSIOR e reservámos os quartos e fomos a correr para o restaurante da frente afogar as mágoas em cerveja e merguez. Ainda o merguez não tinha chegado à mesa e já duas mocetonas (com uns bíceps e umas coxas que fariam inveja ao Mike Tyson) se aproximavam do juke-box. Escolheram Julio Iglesias e entre meneares de ancas – provocando uma deslocação de ar próxima da tempestade tropical – e olhinhos tentavam fazer pela vida. O Joaquim jurava que elas eram da selecção de halterofilia de Marrocos, mas nós não tínhamos bem a certeza. Não demos troco e elas foram-se embora disparando um insulto qualquer. Aí o Adballah levantou-se aos berros, a coisa quase a dar para o torto, a gente a segurar o Abdallah e ele chateado como um raio “as gajas dizem que somos maricas”, o Abdallah a insultá-las em português, eu e o Rui a segurá-lo “deixa lá as moças”, enquanto elas desapareciam pelas traseiras do restaurante.
Para a noite ser perfeita só faltava mesmo a dormida no XCLESIOR. “Tout va avec”, dizem os franceses. Claro que sim. Depois do Ibiza com o semieixo partido, do reboque vindo de nenhures nas curvas da Vaquinha de Moulay Idriss, das culturistas do restaurante só faltava o resto. O XCLESIOR não nos desapontou. Os lençóis não eram mudados há várias décadas, talvez mesmo desde a noite da inauguração e tinham testemunhos abundantes da actividade frenética do local. Nem pensar em meter-me ali. Enrolei-me na coberta e preparei-me para uma noite gelada. Não tive tempo disso. O concerto dos quartos vizinhos, entrecortado pelas torneiras a abrir e a fechar e por momentos de silêncio, não dava tréguas. Lá para as quatro da manhã, uma barulheira medonha no corredor. Passos, gritos, o som de uma garreia. Coisa séria, porque ouvia-se bater no duro. Seriam as pugilistas do restaurante da frente? Por duas vezes a porta do meu quarto fez as vezes de cordas de ringue. “Se os gajos entram pelo quarto dentro, o que raio faço?”.
Às seis espreitei, receoso, o corredor. Um rasto de sangue ao longo do chão não deixava dúvidas em relação à violência do combate. Voltei ao quarto. O estado da banheira competia com o dos lençóis, pelo que optei por um rápido e fresco duche com as peúgas calçadas. Saímos pouco depois, num respeitoso silêncio, prometendo guardar segredo.
Não voltei a Meknes desde esse frio Novembro de há muito tempo. Não faço a mínima ideia de onde ficará o XCELSIOR. Tenho, contudo, a quase certeza de que não terá mudado de ramo. O que será feito das moças não imagino sequer. O Rui jura tê-las visto a alinhar pouco depois pela selecção de rugby da Nova Zelândia mas ele nessas coisas não é de fiar. O Ibiza era vermelho e tinha a matrícula UD-23-95. Recuperou bem da fractura no semieixo e morreu de velho.
Texto publicado no jornal A Planície de 1 de Maio de 2008
Olympia é um celebérrimo quadro de Édouard Manet (1832-1883). Foi pintado em 1863 e causou na época enorme escândalo. Claro que o tema das odaliscas tem precedentes e Manet foi buscar inspiração à tradição renascentista. O que chocou a burguesia da época foi esta representação, carregada de realismo, sensualidade e luxúria, de uma prostituta da alta sociedade. As mesmas, as mesmíssimas, mulheres que os chocados visitantes frequentavam. O Presidente francês Félix Faure que o diga…
A respeito deste último afirmaria Clemenceau "il voulait être César, il ne fut que Pompée". As palavras têm duas leituras. Poderia traduzir mas não me atrevo a explicar.
Quanto às variações sobre o tema de Olympia registei mais de 20. Serão tema para um próximo post.
1 comentário:
Adorei este conto em Meknes, também por ter uma estória semelhante para contar. Não no Excelsior, mas noutro com lençois no mesmo estado. E em plena medina, altas horas da noite, não entre odaliscas (quem me dera!), mas mal encarados rufiões que ainda tinham contas a ajustar com os portugueses, desde os tempos de el-rei Sebastião. Enfim, um dia conto-te...
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