quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ROGÉRIO RIBEIRO

O ROGÉRIO

No outro dia o Rogério Ribeiro partiu e eu já não o via há uns meses. Estava já escuro, e a noite de Lisboa começava a pôr-se bonita, quando nos fomos despedir dele, no meio da família, dos amigos e de muitos, muitos cravos vermelhos.


Conheci-o há muitos anos, já ele dobrara a casa dos 50 e eu dava os primeiros passos em Moura. Na realidade já conhecia o trabalho do Rogério, como grande pintor que é, e também pela sua colaboração no Museu Gulbenkian. Durante muitos meses, em 1985, passei à frente da sede do PCP na Avenida da Liberdade, cuja fachada estava coberta por um esplendoroso desenho do Rogério, celebrando uma revolta popular ocorrida seis séculos antes.

Há horas de sorte. A directora do GAT de Moura era, em 1987, a Teresa, filha do Rogério e minha querida amiga. Foi graças a ambos que pude pôr de pé o projecto Moura na época romana e foi o primeiro momento bom da minha carreira profissional. O projecto em si era simples mas tornou-se, para um puto acabado de sair da Faculdade, um intenso estágio de aprendizagem. O Rogério chegou a Moura, ouviu em silêncio o que eu pensava fazer, foi comentando aqui e ali e depois quis ver o sítio da exposição. Olhou, viu, mediu e depois limitou-se a dizer “ok, vamos a isto”. Nos meses seguintes, houve tantas coisas que aquele senhor de ar calmo e não muitas palavras me ensinou sem nunca o dizer. Recordo algumas, sem preocupações de hierarquia.


A primeira lição foi a do profissionalismo. Todos os projectos são importantes e devem ser tratados com a maior atenção. Guardo e guardarei o projecto de design que o Rogério traçou para aquele espaço, desenhos e mais desenhos, perspectivas, cortes e muitos detalhes da museografia do local. Ao olhar para o calhamaço pela primeira vez pensei “mas que raio vamos ali fazer?”, para depois perceber que o rigor é a primeira e a melhor forma do nosso trabalho ser aceite. Apesar da simplicidade do projecto, o Rogério não deu tréguas e criou para a Casa do Rato uma mão cheia de soluções originais, preocupando-se com os detalhes como se estivesse a trabalhar para o Guggenheim.

A segunda é que o nosso envolvimento nos projectos se mede em função do prazer que eles nos dão e da utilidade que eles possam ter para os outros e não em função de exigências contratuais ou de honorários. Os do Rogério foram uma ridicularia e ainda se dispôs a fazer o cartaz da exposição e a pintar o desenho, em formato gigante, de um capitel. O desenho em si era melhor que muitos dos materiais expostos…


A terceira é a de que o carreirismo e a procura do sucesso a qualquer preço dão, a longo prazo, mau resultado. Várias vezes o ouvi comentar, furioso, o percurso da antigos alunos dele nas Belas-Artes, “raios o partam, um miúdo com tanto talento e olha o que anda a fazer na vida…”. Não tinha, por isso, pachorra para petulantes, vaidosos e arrivistas.

A quarta é uma coisa cada vez mais rara chamada solidariedade. À distância de mais de 20 anos chega a ser emocionante a forma como um consagrado – o Rogério era isso mesmo, embora se tente agora limitar a sua obra à de “ilustrador dos livros de Álvaro Cunhal” (que o foi e excelente) – se entregou ao trabalho, aceitando ter como colega um puto de vinte e poucos anos, que queria fazer coisas e a quem ele achava que tinha que ajudar. Muito mais importante que esse detalhe foi a forma como, com a maior generosidade, sempre esteve disposto a ajudar as pequenas autarquias ou os seus camaradas, com exposições, com projectos, com iniciativas de todo o género. A ele, ao homem ocupado, ao professor, ao autor de projectos nos quatro cantos do mundo, ao pintor que nunca se acantonou no neo-realismo, ao dinamizador de projectos, nunca o ouvi dizer não.


No Verão passado em Beja estive com o Rogério pela última vez. Ultimava, solidariamente, com todo o entusiasmo e apesar de muito debilitado, um painel de azulejos que foi inaugurado dois dias antes da sua partida. Não o voltei a ver depois disso. Na realidade, ao todo estivera com o Rogério umas 20 ou 30 vezes, talvez nem tanto. Razão de sobra para, cada vez mais, estar convencido que coisas na aparência simples como a leitura de um livro, uma aula ou uma conversa podem ser decisivos para o resto da vida. Pelo menos, comigo assim foi.



O pintor Rogério Ribeiro (1930-2008) foi uma das pessoas mais marcantes e extraordinárias que conheci. Este singelo e sentido texto de homenagem foi publicado em A Planície de 1 de abril de 2008.

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