O RELÓGIO DA AMIZADE
Em cada relógio há sempre um amigo
que nos acorda, que suavemente nos percorre
os interstícios da alma, que nos assombra
com sinais discretíssimos de fraterna luz
ou que nos deixa, mesmo em minuto frágil,
um arco triunfal com tâmaras de afecto.
Nesse relógio há um lírio comestível
ou uma plena árvore com seus braços
de deslumbre, ou a mais ínfima erva
que por ele sobrevive à estrondosa queda
do granizo, à dissolução (inevitável) de casas
e areias, e mesmo ao advento da loucura.
É sempre tal relógio um rio profundo
onde a cor dum sol cheio, tantas vezes
reposto, tantas vezes presente em acenar
de címbalos e de búzios, pode acordar
em tons de uma aridez sombria, pode
deixar-nos tristes, sós e desolados,
numa gruta de horror frente ao deserto
- num recanto de sono e desalento.
Nesse amigo de sempre, um tal relógio
- com seus ponteiros de murta ou de veludo,
que saltam como lebres sobre as horas
ou são nichos de abrigo e cestos de avelãs –
é puro movimento e azul que estremece
o fio de cada dia, o voo do coração.
Mesmo em zonas de fogo e exaltação,
nesses lugares de praia mais sensíveis
(como o esplendor do corpo em combustão,
como o fremir da vaga e do desejo),
existe tal relógio, ó engrenagem mágica,
ó tiquetaque nítido, tão cúmplice.
João Rui de Sousa
Não sei se é exatamente o relógio da amizade, mas é uma companhia amiga que agora regressa. A torre do relógio ostenta o nome há dezenas de anos, mais que isso até. Em 1984, creio não me enganar no ano, um temporal destruiu o velho relógio. A recente recuperação da torre deu o mote e levou à pergunta "vamos voltar a ter relógio, não vamos?". Pois...
Aquele relógio é-me companhia certa desde há muito. Quando morava na Rua Nova da Estação e descia a Rua da Parreira e ía para a escola. Quando o espreitava do alto da Palácio da Justiça. Quando o ouvia dar as doze badaladas e a D. Jacinta nos mandava sair. Quando o via na ladeira da Salúquia.
O relógio da torre está de volta. Ainda bem.
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