terça-feira, 3 de dezembro de 2013

TÂNGER, DEMASIADOS ANOS DEPOIS

Os amigos próximos, e que me conhecem há muito tempo, dirão "oh, não! lá está ele, outra vez, com aquela fixação com a cidade de Tânger…". Esta crónica, publicada no dia 1 de dezembro em "A Planície" é dedicada, portanto, aos que não sabem da minha paixão por Tânger.


Foi num memorável 1999. No ano anterior fôramos designados (o Cláudio Torres e eu) comissários científicos de uma exposição que deveria ter lugar por ocasião da Cimeira Luso-Marroquina. A iniciativa partira do então primeiro-ministro António Guterres, deixando-me mais que surpreso. Com argumentos que convenceram facilmente Francisco Motta Veiga, assessor cultural do PM, coseguimos empurrar a exposição para Tânger. Constituímos, o Francisco, o Cláudio, a Conceição Amaral e eu, um grupo de trabalho que se encarregou de trabalhar o tema. As razões pessoais eram inconfessáveis e a opção Tânger causou alguma estranheza. A cidade tinha a reputação de “complicada” e a memória da revolta do pão, ocorrida em 1984, ainda não se apagara. Acabou por ser o sítio escolhido, marcando-se o início do mês de setembro para o evento.

Estivera em Tânger no outono de 1981. Não regressara à cidade. Mas guardava daqueles dias a memória, talvez demasiado doce, dos finais de tarde, espreitados da varanda do Hotel Velázquez. Ao longe, os ciprestes e a kasbah faziam de sombras chinesas contra o Estreito. Mas longe ainda, e por entre a bruma, desenhava-se o Eldorado europeu. Vinte anos depois tudo estava na mesma. O sortilégio da cidade estava, e está, nessa imobilidade, numa quietude secular, que contrasta com o frémito andaluz que enche as ruas no fim da tarde. Há coisas que não mudarão nunca: a cor das águas às portas do Mediterrâneo, o vento que sopra sem cessar e o ar decadente que da arquitetura colonial. As que se transformam, fazem-no num ritmo lento e cerimonioso.

A fase final da exposição foi feita ao ritmo da leitura de “Jour de silence à Tanger”, de Tahar Ben Jelloun. O livro começa assim:

“Esta é a história de um homem perseguido pelo vento, esquecido pelo tempo e desprezado pela morte.

O vento vem de leste, na cidade onde o Atlântico e o Mediterrâneo se encontram, uma cidade feita de colinas sucessivas, enigma doce e inatingível.

O tempo começa com o século ou quase. Forma um triângulo no espaço familiar desse homem que, cedo – tinha 12 ou 13 anos -, deixou Fez para ir trabalhar no Rif, em Nador e Melilla, para voltar a Fez durante a guerra e emigrar nos anos 50, com a sua pequena família, para Tânger, cidade do estreito, onde reinam o vento, a preguiça e a ingratidão”.

O livro foi lido entre o Petit Zoco, os cafés do Boulevard Pasteur e o museu onde a exposição “Marrocos-Portugal: portas do Mediterrâneo” estava a ser montada. As palavras do autor foram, em mais de uma ocasião, inspiradoras. Perdi-me, à custa delas e por mais de uma vez, nas vielas da cidade antiga, por entre as sombras e o silêncio. A exposição foi um assinalável sucesso e marcou um ponto de viragem na minha vida. Só voltei a Tânger no passado mês de março, mas apenas por um dia. Sem tempo para retomar o caminho do bairro de Marshan, mesmo sobre o mar. Sem tempo para passar pelo caos da cidade. Penso sempre que poderia para lá partir amanhã e não mais voltar. Março já foi há demasiado tempo. Tentarei regressar, um destes dias, à cidade do vento, da preguiça e do caos. Mas não da ingratidão.

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