A fotografia data do verão de 1967.
Estou em pijama e cabelo cortado à tijela, na cozinha de uma casa em
Montenegro, perto de Faro. Lembro-me da casa por causa dessa fotografia e
porque um dia, em frente à casa, um cão se atirou a um motociclista, deixando-o
maltratado. No retrato estou eu, orgulhoso, com uma máquina fotográfica de
plástico ao pescoço. Quando clicava no obturador, saía da lente uma cabeça de
leão... Eu achava que estava a fotografar. Na realidade, era um gesto de imitação.
Por causa do João. O João andava quase sempre com uma Regula King, de fabrico
alemão, que comprara em Luanda. Às vezes deixava-me disparar, e eu achava graça
aqueles risquinhos que se viam quando espreitava pelo visor.
A fotografia foi-me útil anos mais
tarde. Por razões profissionais e terapêuticas. Escondia uma crónica timidez
detrás das lentes. Um
amigo trouxe-me dos Estados Unidos uma Nikon FM2, com uma magnífica lente de 50
mm (1:8). Foi a primeira máquina a sério. A necessidade de fazer registos dos
trabalhos de arqueologia levou-me a investimentos pesados: uma Leica R7
primeiro, uma Leica M6 dois anos mais tarde. Esta em especial, silenciosa e com
uma lente extraordinária, passou a ser companhia fiel. De dia e de noite. A
timidez continuou, anos a fio, quase sem cura. Deambular pelo Magrebe, pelo
Médio Oriente e por África tornou-se, até me tornar autarca, parte da minha
vida e da minha auto-formação. Rolos a preto e branco FP4 (125 asa) e HP5 (400
asa), usados consoante as circunstâncias. As máquinas tornaram-se introspeção e
reflexão. Enquanto me concentrava naquilo não pensava noutras coisas. Enquanto
tentava resolver os enquadramentos, não me preocupava com outros assuntos.
Fotografar tornou-se, cada vez mais, um ato solitário e compensador.
Interessam-me as sombras, os reflexos e
as diagonais. Não sou um bom fotógrafo. Não tenho, por isso, traumas nas vezes
em que falhei e nas muitas coisas menos boas que fui fazendo. Lá para trás,
ficaram duas pessoas: o miúdo de pijama que clicava numa máquina de brincar
comprada em Ayamonte, e o adolescente que fazia "reportagens" à beira
do Ardila no meio de infináveis patuscadas. Fotógrafo? Nem por sombras. Um
homem na casa dos 50 que gosta de fazer retratos. Em maio, haverá uma pequena
exposição de rua sobre espaços de culto, durante o Festival Islâmico, em
Mértola. A partir de outubro, as máquinas ressuscitam. Se ainda não tiverem
ganho ferrugem.
Crónica publicada hoje, em "A Planície"
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