segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

MEMÓRIA AMARELEJENSE

Regresso quente à Amareleja. Dois dias de regresso, com passagem pela Feira do Vinho e com muitos reencontros. Dias felizes e descontraídos.

De volta a Mértola, reparei que nunca publiquei, aqui no blogue, o texto que escrevi para o álbum fotográfico do José Manuel Rodrigues. É altura de o fazer.

No dia da apresentação, em setembro passado, disse que o meu texto era uma declaração de amor a um sítio. Mantenho essa ideia.







AMARELEJA

A terra é quente, as pedras escaldam. O calor molda o espírito e ajuda a afeiçoar o vinho. É assim o verão na Amareleja. Quando chegar o outono, o calor será um pouco menos. Haverá vindimas e depois virá o frio e depois haverá vinho novo. Por agora, o céu é quase sempre azul. Entre o céu e a terra se fez a Amareleja. Entre o céu e a terra se faz o vinho da Amareleja.
O céu é imenso e dele cai, a pique, o sol. Sol e terra ajudaram a refazer, em tempos não muito remotos, a Amareleja. Do sol veio a ligação a um mundo tecnológico. Fotovoltaico, renováveis, megawatts. Palavras estranhas e de som estrangeiro tornaram-se familiares. À saída da aldeia, uma floresta de tecnologia lançou o nome da Amareleja pelos quatro cantos do mundo. O olival de ferro tornou-se imagem de marca. Central e Amareleja fundem-se num só espaço. Como outrora quase se disse, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Do sol vêm o calor e a energia. Do sol e da terra vem o vinho. O sol e o vinho são as imagens fortes da aldeia.
A aldeia é um sítio e muito mais do que um sítio. A Amareleja espraia-se em linhas longas e contínuas, Ferrarias abaixo, Alto de Bombel acima. Não há declives fortes ou cortes abruptos. A Amareleja estende-se num suave ondular, numa geografia toda feita de recortes e de imprecisões. Como suave é o andar das mulheres com quem nos cruzamos. O poder ordenador das leis e do urbanismo chegou tarde às terras mais escondidas. As amarelejas do interior habituaram-se a tomar conta de si. O ziguezaguear das ruas e a improvisação dos limites são a marca de sítios assim.
Há hoje mais casas que não são habitadas e menos gente a viver aqui. Os 6500 habitantes de 1950 são hoje pouco mais de 2500. A Amareleja tem hoje extensões na Amadora, na Cova da Piedade, no Barreiro e converteu-se num sítio mítico para os que lá estão. Os que partiram um dia, os seus filhos e netos, regressam no verão ao ponto de origem. Por esses dias cumprem-se roteiros sentimentais pelas ruas da vila, “ali viveram os teus avós”, “naquela casa nasci eu e na rua ao lado a tua mãe”. Essa memória feita palavra será um dia esquecida.
Na Festa da Santa Maria, em pleno verão, tudo é mais intenso. Tudo se vive com calor. É tanto o culminar de um ano de trabalho como um ponto de encontro entre os amarelejenses de todas as partes do mundo, tanto uma manifestação sagrada como a expressão do mais belo paganismo. A animação é, sobretudo, noturna, as celebrações religiosas têm lugar durante o dia. O paganismo casa com a lua, a crença fá-lo com o sol. O sol é uma das imagens de marca da Amareleja. O vinho é outra. Acrescentemos agora a lua da Amareleja, que é também clara e luminosa e diferente das demais.
A austeridade impera. No centro há alguns palacetes, das famílias mais ricas da Amareleja. As casas são simples. Um pouco menos simples e um pouco menos austeras, nos dias de hoje. Mas antes eram quase todas iguais. Fachada com porta e uma ou duas janelas, num primeiro jogo de simetria. Corredor, quartos de um lado e do outro, cozinha, quintal ao fundo. Taipa e caniço, telha mourisca. Cal por toda a parte. Nas casas de mais posses, faziam-se abóbadas. Um luxo de frescura ou de calor, consoante a estação do ano. A geometria das abóbadas é feita de um fio e de um prego. Uma matemática do quotidiano que desafia fórmulas e cálculos. Há conhecimentos assim, sem registo nem compêndios. São coisas assim que explicam a alma dos sítios.
A decoração das casas é simples e austera, também. A memória das famílias espalha-se pelas paredes e pelos móveis. Há fotografias de casais jovens. Sentados à camilha e com o peso do tempo, são agora menos jovens os que vemos nas paredes. No corredor de entrada, sobre os móveis, há sempre fotografias. Todos nós temos fotografias dessas em casa, do tempo em que se faziam fotografias no estúdio, todos quietos e aprumados, penteados e vestidos para uma grande ocasião. Agora já ninguém vai ao fotógrafo, porque esse ritual desapareceu e assim já ninguém retrata a alegria de tempos idos. Os retratos de família das casas da Amareleja, assim congelados no tempo, são o retrato de todos nós. Daquilo que fomos e daquilo que mais tarde seremos. Os retratos das meninas de sorriso tímido e rodeadas de irmãos mais novos ou mais velhos, rindo descaradamente para o fotógrafo, passará um dia para sobrinhos e para sobrinhos-netos. Até que estes, esquecidos de quem são aqueles grupos de ar feliz, os metam, sem pena e levando consigo a felicidade de tempos idos, na caixa do esquecimento.
A aldeia é terra de sentimentos fortes: amor, paixão, amizade, ódio, vingança. É a paixão dos fortes feita rua e gente. Dos árabes ficou a al-kunya. A alcunha. E um certo sentido tribal. Há sítios onde o tempo parece ter parado. Há lojas que armazenam as memórias da aldeia.
A Amareleja é a terra do que nunca foi e do que já deixou de ser. A torre do relógio não foi concluída, a esplanada mercedes, sítio de tantas vidas e de tantas recordações, é um cenário de ópera, sem músicos nem cantores nem público. E, contudo, a música está presente em toda a aldeia. É uma das suas marcas mais fortes. A banda é centenária, as vozes são milenares. Os grupos corais, improvisados ou de aparato, passam de geração em geração. Os músicos da filarmónica sucedem-se, em registo semelhante.
O solo é duro e cizento, duro e ingrato. A generosidade do sol fertiliza a terra e fertiliza o vinho. O processo dura meses e há-de ser consumado nas tabernas. As tabernas são a arquitetura viva do vinho. As leis, os bons costumes, a decência pequeno-burguesa acabaram com as tabernas de outrora. Restam, em memória, algumas adegas com talhas opulentas e com um contraluz de sombras chinesas. Resta o silêncio musical das tabernas, com o som dos copos nos tampos de mármore e o sussuro das vozes. Resta o traço dos que passaram pela Amareleja. Johannes Vermmer parece ter estado no Vela e desenhado o chão, um dia, há muito tempo. No Vela estão Vermeer e o vinho dos amantes de Baudelaire.
A Amareleja é filha do cantar dos poetas andaluzes, da sua paixão pelo vinho e pelas mulheres. Há requebros mediterrânicos nas romarias, nos cavalos, nos passeios ao campo, nos touros que são corridos. A carroça de flores de papel em muitas cores que, à força de mula, vi um dia dar voltas e mais voltas à esquina da rua Umar al-Mukhtar, em Tripoli, podia estar na Amareleja, na nossa primavera. Quase com os mesmos rapazes e com as mesmas raparigas. A aldeia podia estar mais a sul ou mais a norte. O espírito seria o mesmo, decerto.
A aridez também seria a mesma, porque o clima é seco, e também ele ajuda a temperar o caráter. Quase nunca chove na Amareleja. Mas quando chove, a água cobre tudo. A água, que quase não corre nesta terra de sol, de vinho e de belas mulheres, quase tudo cobre nesses dias. Os barranquinhos, o regato, vão buscar o nome a essa água rara e súbita.

Entre o céu e a terra se fez a Amareleja. Entre o céu e a terra se faz o vinho da Amareleja, que neste livro tantas vezes encontramos. E que tão presente está na imagem da aldeia. Partamos com o vinho em direção a um céu feérico. Não esqueçamos nunca o poder mágico da terra e do céu feérico sobre nós.

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