sábado, 29 de setembro de 2018

JUDEUS EM MOURA

Pormenor do fol. 388 v. do manuscrito da Bodleian Library (segundo estudo de Tiago Moita)

Que Moura tinha uma comuna de judeus é facto há muito conhecido. Até à data, contudo, não se conseguiu localizar, de forma inequívoca, o sítio da judiaria. Ou seja, do bairro onde morava a comunidade. Não temos, sequer, prova de que viveriam num sítio apartado, como os mouros. Os documentos que consultei, em tempos, na Torre do Tombo apontavam para uma “concentração” de comerciantes judeus no quarteirão onde mais tarde se instalou a Misericórdia. Não é de estranhar que assim fosse. Tratava-se de um grupo bem instalado na vila, com meios financeiros acima da média e com instrução e hábitos culturais que os destacava dos restantes moradores.

Dos judeus de Moura nada ficou. A razia que se seguiu à expulsão, em finais do século XV, foi quase total. Não temos uma única lápide funerária, um só indício quanto à localização da sinagoga ou qualquer evidência da presença da comunidade judaica na nossa terra. Não fossem os textos na Torre do Tombo e poderíamos dizer que nunca teriam existido.

Mas há mais e melhor que os pergaminhos das Chancelarias Régias. Fui, há tempos, contactado por um teólogo ribatejano, Tiago Moita. Veio, simpaticamente, dar-me conhecimento da existência de uma Bíblia Hebraica, feita em Moura. Data de 1470 e está hoje na Bodleian Library, em Oxford. Tem a cota MS Canon. Or. 42. Tiago Moita fez a sua investigação neste domínio, tendo-se doutorado com uma tese intitulada “O livro hebraico português na Idade Média: do Sefer He-Aruk de Seia (1284-85) aos manuscritos iluminados tardo-medievais da Escola de Lisboa e os primeiros incunábulos”. Coligiu cerca de 60 manuscritos hebraicos, produzidos entre os séculos XIII e XV. Ainda que Lisboa lidere, em termos de quantidade de documentação produzida, há manuscritos de localidades como Faro, Torres Vedras, Elvas, Évora, Guarda, Leiria, Loulé, Moura, Porto, Santiago do Cacém, Seia e Setúbal. Como se lê no resumo da tese “depois da expulsão dos judeus de Portugal em 1496/97, o principal destino destes livros foi a Península Itálica, além do Norte de África e do Império Otomano, como é patente na informação interna deixada pelos sucessivos proprietários dos volumes”. O que foi, para nós, uma terrível perda cultural tornou-se, para outros, motivo de enriquecimento. A produção de uma bíblia hebraica, ricamente decorada, na nossa terra é um dado a raiar o insólito. No texto “A Bíblia hebraica de Moura: um testemunho de arte mudéjar no Alentejo”, Tiago Moita explica o contexto preciso em que tal sucedeu. Foi copiada por Samuel ben Abraham Altires para Isaac Gabay, um rico mercador lisboeta, no ano de 1470.


Que as seis dezenas de manuscritos deste período estejam hoje, sem exceção, em bibliotecas estrangeiras (Estados Unidos, Rússia, Suiça, Reino Unido etc.) é uma perda para todos nós. E é motivo de vergonha. Que um deles, de rara beleza, tenha sido produzido por um conterrâneo nosso, desconhecido mas talentoso, deve orgulhar qualquer mourense.

Crónica em "A Planície"

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