Há projetos que gostaria de ter terminado de forma mais rápida. O livro sobre a Mouraria cai nesse grupo. Os motivos são ora difusos, ora obscuros. O ponto de partida foi um conjunto de materiais cerâmicos, de excecional qualidade, recolhidos em duas campanhas arqueológicas. Publicar e ler séries de cacos sempre me pareceu tão excitante como consultar os catálogos do IKEA. Fotografias, números de inventário, medidas. Fazer da História uma leitura técnica é um aborrecimento sem fim.
Pensámos, o José Gonçalo e eu, em usar as peças de arqueologia – algumas delas especialmente luxuosas – como ponto de partida para um reenquadramento da realidade social do bairro. Porque a Mouraria medieval foi muito mais que um conjunto de ruas, de travessas, de materiais arqueológicos, de casas e de chãos. Não sem esforço, retomaram-se textos e manuscritos antigos. Passámos a trocar – num jogo de ping-pong – pilhas de artigos e de textos de origem diversa, sobre materiais cerâmicos. Não pelas peças em si, mas porque nos ajudavam a enquadrar a cronologia dos achados e, consequentemente, uma época de maior riqueza dos mouros da nossa terra. O compasso começou muito aberto, depois foi-se fechando. “Aquilo” eram, genericamente, coisas do século XIV, talvez mesmo de inícios do XV. Constatámos, com relativa surpresa, que não havia assim tanta bibliografia disponível publicada que nos pudesse dar um enquadramento mais rigoroso. Entra em ação a rede de contactos. Sucedem-se os mails para Jaume Coll (diretor do Museu Nacional de Cerâmica, em Valência), para Alberto García (da Universidade de Granada), para Fernando Villada (do Museu de Ceuta), para amigos lusitanos como Marco Liberato ou Isabel Cristina Fernandes. O cruzamento de informações e a especificidade dos sítios começa a apontar-nos uma datação genérica. “Aquilo” era um conjunto de materiais cerâmicos da segunda metade do século XIV. Poderíamos arriscar algures entre 1350 e 1380, mas pareceu-nos “atrevimento” a mais.
O livro ía tomando formando, num “mix” de materiais e de contexto histórico. Que tópicos fundamentais importa sublinhar sobre os mouros de Moura?
1. Parte dessa comunidade continuava a explorar a várzea do Ardila, ainda que sob a forma de arrendamento, daí tirando alguma riqueza;
2. Havia membros dessa comunidade particularmente desafogados, o que lhes permitia encomendar peças cerâmicas de apurado fabrico, com origem em sítios tão longínquos como Sevilha, Málaga e Valência;
3. Na segunda metade do século XIV, e enquanto decorreu a obra da construção da Torre de Menagem (ah, a importância do investimento público...), a circulação monetária aumentou certamente em Moura. Isso permitiu às famílias utilizar parte do seu pecúlio em bens sumptuários.
Já com o trabalho relativamente avançado, resolvemos incorporar ao livro um ensaio de José Francisco Finha, sobre a identificação da toponímia medieval do bairro. Um estudo minucioso e de grande interesse. Acabámos incluindo os dois textos num livro, a que demos título em latim “Stuvia Historica & Archaeologica – Movra Medievalis”. Haverá um segundo livrinho, em 2021: “Stuvia Historica & Archaeologica – Ossa Islamica”. O conteúdo de ambos será, contudo, em português.
Crónica em "A Planície". Um atraso na receção do prefácio levou a passar a data de 7 (data publicada no jornal) para 14 de março.
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