Todos os dias, quando subo para o meu
gabinete, na torre I do Panteão Nacional, abro a janela e olho para o outro
lado do rio. Trabalhar de portas abertas é um velho hábito, trazido dos tempos
em que estava na Câmara de Moura. Ao fundo, para lá da margem esquerda do Tejo,
está o requebro do Castelo de Palmela. Vê-se com toda a nitidez, a 25
quilómetros de distância. Para lá do castelo, 159 quilómetros a sudeste, está a
minha casa na Salúquia. É para lá que olho, mesmo sem a ver, é lá que estou,
mesmo quando me sento à secretária e começo a trabalhar.
Do
outro lado do Tejo está o outro lado do sul. Esse outro lado do sul chama-se
Alentejo. Aquele que é o meu, aquele onde nasci e para onde um dia regressarei.
Há coisas que o Alentejo tem e que não encontro em mais lado nenhum. O Alentejo
são as romarias na primavera, e as procissões ao longo do campo. Os textos da
antiga Grécia descrevem procissões assim. São tão antigas como este mundo do
sul onde vivemos. O Alentejo é a vinha e o vinho, a oliveira e as azeitonas e o
azeite, e a figueira. O sul é a cal e o branco mais intenso que existe. E um
céu azul, que assim tão azul só encontramos no Alentejo, na Andaluzia ou no
Peloponeso. O Alentejo é a terra das festas vibrantes, “tierra ensangrentada en tardes de toros”, que Agustín Lara (que era
mexicano...) imortalizou. O Alentejo são os nervos à flor da pele. É um
território de sentimentos fortes: amor,
paixão, amizade, ódio, vingança. É a paixão dos fortes feita gente. É um
mundo antigo, feito de gente firme e digna.
O
Alentejo é o som das vozes e do cante. Há 25 anos, andando ao longo da muralha,
em Mértola, ouvi, 20 metros mais abaixo,
alguém que cantava no rio uma moda de extraordinária beleza. Era uma
daquelas vozes melancólicas e cheia de uns trinados que vão sendo cada vez mais
raros. A
voz do pescador enchia o anfiteatro natural que Mértola é, para meu encanto e
para espanto de um grupo de turistas alemães que assistia, fascinado,
àquela exibição. A
voz daquele pescador representava o que vai resistindo de uma cultura milenar.
Há muitas centenas de anos que as margens do Guadiana, e os esplendorosos
cerros à sua volta, ouvem pescadores cantar a mesma musicalidade, dita umas
vezes em latim, outras em árabe, outras enfim em português. O pescador já não
está entre nós e não voltarei a ouvir ninguém cantar daquela maneira. Mas o
episódio dessa manhã ficou-me bem gravado. O sul é, para mim, também essa
memória de pessoas, de sítios, de sons, de cores e de pequenas histórias. E cada
um de nós tem o seu Alentejo, cheio de recordações e de episódios. Não
é uma anedota nem a caricatura que dele quis fazer, desgraçadamente, Henrique
Raposo.
Amanhã
de manhã, repetirei o ritual de todos os dias. Entrarei pela porta lateral,
cruzarei o coro baixo e entrarei no meu gabinete. Abrirei a janela de par em
par e olharei para o castelo de Palmela, lá longe. E pensarei, como sempre,
“está ali o outro lado do sul”.
4 comentários:
Alentejo sim é tudo isso.No alentejo as horas são mais compridas.É uma região onde mal se entra o tempo parece outro.São as tardes de um tempo longo junto ao Guadiana a ouvir o correr do rio até ao anoitecer.
Foi também o meu local de partida, não sei se será o meu local de regresso , quando todas as luas , passarem...retenho cada canto, cada rua, e, aquele largo da Latoa, onde jogávamos à bola, com o Joli a servir de guarda redes?E...E tudo que fica tatuado no coração? O Tempo o dirá, mas ninguém me espera ...todos já partiram...
Que lindo texto!Sim o Alentejo é tudo isso...
E de repente um breve texto sobre o pensar o Alentejo à distância e prever o regresso a essa zona do país suscitou comentários interessantes.Todos eles a revelarem de algum modo as origens alentejanas e o sentir daquela terra e das suas gentes;é algo que o decurso do tempo e o afastamento físico nem sempre conseguem eliminar.Fica sempre um lastro permanente de um sul profundo,que se fecha sobre o viajante,mal passa o Guadiana,dantes pela velha ponte ferroviária,hoje pelas múltiplas pontes sendo a da barragem do Alqueva a que mais impressiona.Para alguns ali já começa um novo mar e novas esperanças.
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