na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida
sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor
depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo
mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição
O poema é de Al Berto (1948-1997). Encontrei-o um pouco ao acaso, enquanto procurava palavras que dessem sentido à fotografia, colocada no facebook pelo meu amigo Mário Catarrunas. O autor do blogue é o da camisa colorida. Há mais dois amigos, a Zezinha e o Tarugo. Mas é como se estivessem lá todos os outros desses dias. A fotografia deve datar de 1980 ou 1981.
3 comentários:
E também sobre o medo...muito bom
Do nosso querido Al berto
"...escrevo-te
pelo corpo sinto um arrepio de vertigem
que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite de teu rosto!
corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir a tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te porque parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr pela rua..."
Na realidade, o post é sobre um tempo perdido e sobre os amigos daqueles dias. Que, felizmente, são também os de hoje.
Em todo o caso agradeço muito o contributo, ainda que um pouco "lateral".
Caro Santiago Macias
Gosto do escreve, da forma como pensa, do seu culto
bom gosto. E, embarcando na toada nostálgica do
(belo) poema do Al Berto, aqui lhe deixo alguns versos
da Sophia de Mello Breyner Andersen:
Era o tempo das amizades visionárias
Entregues a sombra a luz a penumbra
E ao rumor mais secreto das ramagens
Era o tempo extático das luas
Quando a noite se azulava fabulosa e lenta
Era o tempo do múltiplo desejo e da paixao
Os dias como harpas ressoavam
Era o tempo de oiro das praias luzidias
Quando a fome de tudo se acendia
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