quarta-feira, 4 de julho de 2018

MEMÓRIA DA MOURARIA

MEMÓRIA DA MOURARIA
(texto para a Alice Reis e para o Jorge Liberato)

Durante muito tempo me perguntei “afinal, quem vivia na Mouraria de Moura?”. Quem era aquela gente que, depois da reconquista da vila, por aqui foi ficando? De que viviam? Que contactos tinham fora da nossa região?

Durante muito tempo tive, erradamente, a ideia que eram apenas pequenos hortelões, artesãos sem grandes rendimentos. O tempo, novas leituras, os estudos de outros colegas, a arqueologia, obrigaram-me a rever uma posição tão radical.

Começando pelo mais fácil. Quem era Brafama? Um proprietário do século XIV, depois “passado” à História como noivo de Salúquia. Era um dos membros de uma comunidade que tinha terras e que, apesar de ter sido desapossada da rica várzea do Ardila, a continuou a explorar. E daí tirava rendimentos muito significativos. A minha colega Filomena Barros, que tem estudado aprofundadamente as comunidades muçulmanas, não tem dúvidas em dizer que a Mouraria de Moura era das mais ricas do País. Daí que o rei recorresse aos seus habitantespara pedir empréstimos para financiar a Coroa. Só nos ano de 1440 foram três ajudas ao Estado, num total de 18.000 réis (dá qualquer coisa como nove cêntimos, na moeda atual).

A imagem de uma comunidade que tinha uma vida bem mais desafogada do que em tempos pensei foi-se construindo com o tempo. Tinham meios para encomendar placas funerárias escritas, como a que assinalou a mortede Ismail Ibn Abi Abd Allah al-Ansari.Era um morador do bairro, que faleceu no dia 17 de shaban de 769. Uma data do calendário muçulmano que corresponde ao dia 7 de abril de 1368.Não esqueçamos, já agora,que a mouraria foi instalada sobre parte do antigo cemitério muçulmano.

Os habitantes da mourariatinham meios para manter uma mesquita, que se situava onde hoje é o largo. Essa mesquita tinha um “al-faqih”, um legista que devia fazer também o papel de capelão ou almoedão, cabendo-lhe o chamamento à oração.

Não se poderá que os habitantes fossem cosmopolitas, pelos nossos padrões atuais. Mas tinham contactos fora das fronteiras do Reino de Portugal. Duranteescavações arqueológicasrealizadas há anos no bairropor José Gonçalo Valente e por Vanessa Gasparapareceu um assinalável espólio cerâmico. De onde vinham os luxuosos pratos usados pela elite local? De Sevilha, de Málaga, de Valência. Na segunda metade do século XIV – a cronologia das peças parece ser coerente – havia gente na Mouraria com capacidade financeira para encomendar peças nos melhores ateliers da Península Ibérica.

Que temos hoje?Três ruas (Primeira, Segunda e Treceira, assim mesmo),uma travessa e um largo.Um bairro bonito. E tem as pessoas, que são melhores que as ruas e que as luzes.

Prepara-se, por esta altura, um livrinho sobre a Mouraria. Daqui por uns meses está na rua.



Texto para "A Planície" de hoje. Com uma correção: Brafama era do século XIV, não do XV.

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