sábado, 21 de julho de 2018

PESCADOR


Fotografia feita em Mopti (Mali), na primavera de 2008. O poema é de Vinicius de Moraes. Coisas de sábado ocioso.

PESCADOR
Rio de Janeiro , 1946

Pescador, onde vais pescar esta noitada: 

Nas Pedras Brancas ou na ponte da praia do Barão? 
Está tão perto que eu não te vejo pescador, apenas 
Ouço a água ponteando no peito da tua canoa... 

Vai em silêncio, pescador, para não chamar as almas 
Se ouvires o grito da procelária, volta, pescador! 
Se ouvires o sino do farol das Feiticeiras, volta, pescador! 
Se ouvires o choro da suicida da usina, volta, pescador! 

Traz uma tainha gorda para Maria Mulata 
Vai com Deus! daqui a instante a sardinha sobe 
Mas toma cuidado com o cação e com o boto nadador 
E com o polvo que te enrola feito a palavra, pescador! 

Por que vais sozinho, pescador, que fizeste do teu remorso 
Não foste tu que navalhaste Juca Diabo na cal da caieira? 
Me contaram, pescador, que ele tinha sangue tão grosso 
Que foi preciso derramar cachaça na tua mão vermelha, pescador. 

Pescador, tu és homem, hem, pescador? que é de Palmira? 
Ficou dormindo? eu gosto de tua mulher Palmira, pescador! 
Ela tem ruga mas é bonita, ela carrega lata d'água 
E ninguém sabe por que ela não quer ser portuguesa, pescador... 

Ouve, eu não peço nada do mundo, eu só queria a estrela-d'alva 
Porque ela sorri mesmo antes de nascer, na madrugada 
Oh, vai no horizonte, pescador, com tua vela tu vais depressa 
E quando ela vier à tona, pesca ela para mim depressa, pescador? 

Ah, que tua canoa é leve, pescador; na água 
Ela até me lembra meu corpo no corpo de Cora Marina 
Tão grande era Cora Marina que eu até dormi nela 
E ela também dormindo nem me sentia o peso, pescador... 

Ah, que tu és poderoso, pescador! caranguejo não te morde 
Marisco não te corta o pé, ouriço-do-mar não te pica 
Ficas minuto e meio mergulhado em grota de mar adentro 
E quando sobes tens peixe na mão esganado, pescador! 

É verdade que viste alma na ponta da Amendoeira 
E que ela atravessou a praça e entrou nas obras da igreja velha? 
Ah, que tua vida tem caso, pescador, tem caso 
E tu nem dás caso da tua vida, pescador... 

Tu vês no escuro, pescador, tu sabes o nome dos ventos? 
Por que ficas tanto tempo olhando no céu sem lua? 
Quando eu olho no céu fico tonto de tanta estrela 
E vejo uma mulher nua que vem caindo na minha vertigem, pescador. 

Tu já viste mulher nua, pescador: um dia eu vi Negra nua 
Negra dormindo na rede, dourada como a soalheira 
Tinha duas roxuras nos peitos e um vasto negrume no sexo 
E a boca molhada e uma perna calçada de meia, pescador... 

Não achas que a mulher parece com a água, pescador? 
Que os peitos dela parecem ondas sem espuma? 
Que o ventre parece a areia mole do fundo? 
Que o sexo parece a concha marinha entreaberta pescador? 

Esquece a minha voz, pescador, que eu nunca fui inocente! 
Teu remo fende a água redonda com um tremor de carícia 
Ah, pescador, que as vagas são peitos de mulheres boiando à tona 
Vai devagar, pescador, a água te dá carinhos indizíveis, pescador! 

És tu que acendes teu cigarro de palha no isqueiro de corda 
Ou é a luz da bóia boiando na entrada do recife, pescador? 
Meu desejo era apenas ser segundo no leme da tua canoa 
Trazer peixe fresco e manga-rosa da Ilha Verde, pescador! 

Ah, pescador, que milagre maior que a tua pescaria! 
Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela pescador! 
Teu anzol é brinco irresistível para o peixinho 
Teu arpão é mastro firme no casco do pescado, pescador! 

Toma castanha de caju torrada, toma aguardente de cana 
Que sonho de matar peixe te rouba assim a fome, pescador? 
Toma farinha torrada para a tua sardinha, toma, pescador 
Senão ficas fraco do peito que nem teu pai Zé Pescada, pescador... 

Se estás triste eu vou buscar Joaquim, o poeta português 
Que te diz o verso da mãe que morreu três vezes por causa do filho na guerra 
Na terceira vez ele sempre chora, pescador, é engraçado 
E arranca os cabelos e senta na areia e espreme a bicheira do pé. 

Não fiques triste, pescador, que mágoa não pega peixe. 
Deixa a mágoa para o Sandoval que é soldado e brigou com a noiva 
Que pegou brasa do fogo só para esquecer a dor da ingrata 
E tatuou o peito com a cobra do nome dela, pescador. 

Tua mulher Palmira é santa, a voz dela parece reza 
O olhar dela é mais grave que a hora depois da tarde 
Um dia, cansada de trabalhar, ela vai se estirar na enxerga 
Vai cruzar as mãos no peito, vai chamar a morte e descansar... 

Deus te leve, Deus te leve perdido por essa vida... 
Ah, pescador, tu pescas a morte, pescador 
Mas toma cuidado que de tanto pescares a morte 
Um dia a morte também te pesca, pescador! 

Tens um branco de luz nos teus cabelos, pescador: 
É a aurora? oh, leva-me na aurora, pescador! 
Quero banhar meu coração na aurora, pescador! 
Meu coração negro de noite sem aurora, pescador! 

Não vás ainda, escuta! eu te dou o bentinho de São Cristóvão 
Eu te dou o escapulário da Ajuda, eu te dou ripa da barca santa 
Quando Vênus sair das sombras não quero ficar sozinho 
Não quero ficar cego, não quero morrer apaixonado, pescador! 

Ouve o canto misterioso das águas no firmamento... 
É a alvorada, pescador, a inefável alvorada 
A noite se desincorpora, pescador, em sombra 
E a sombra em névoa e madrugada, pescador! 

Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora 
És tão belo que nem sei se existes, pescador! 
Teu rosto tem rugas para o mar onde deságua 
O pranto com que matas a sede de amor do mar! 

Apenas te vejo na treva que se desfaz em brisa 
Vais seguindo serenamente pelas águas, pescador 
Levas na mão a bandeira branca da vela enfunada 

E chicoteias com o anzol a face invisível do céu.

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