quinta-feira, 9 de abril de 2020

SÍSIFO

Entre 19 e 21 de abril de 1506, 4.000 pessoas foram massacradas em Lisboa. Eram, na sua maioria, judeus. Havia peste em Portugal. Em tempos de peste e de seca, havia que criar bodes expiatórios e culpar alguém da desgraça que a todos atingia. Os relatos são impressionantes e se alguém quiser testar a ideia dos “brandos costumes” não tem mais que ler as narrativas da época. Damião de Góis deixa-nos esta descrição: “e por já nas ruas nam acharam nenhus christãos nouos, foram cometer com vaiues (vaivéns) e eicadas (escadas), has casas em que viuiam, ou onde sabiam que estauam, e tirandohos dellas, arrasto pelas ruas, cõ seus filhos, molheres e filhas, hos lançauam de mistura viuos e mortos nas fogueiras, sem nenhua piedade, e era tamanhaha crueza que atte nos mininos, e nas crianças que estauão no breço (berço) há executauam, tomandohos pelas pernas fendendo hos em pedaços, e esborrachandohos darremesso nas paredes”.

A culpa da pandemia, atribuída hoje aos estrangeiros, é a trineta do massacre. Este, felizmente, impossível de repetir em Portugal. Ainda assim, há dias eram os nepaleses, coitados deles..., os alvos da desconfiança. Diga-se de passagem, que a peste de 1506 continuou por mais algum tempo, sem que o sangue dos judeus tivesse apressado o fim da epidemia.

O medo do desconhecido não desapareceu. Mudou de forma e tomou outras linhas. Somos confrontados, a cada dia que passa, com novos avanços e com novas limitações. Num dia futuro, o tormento por que passamos será banal e encarado com despreocupação. Por agora, temos o desconhecido, o medo e a incerteza à nossa frente. A barbárie da turba lisboeta, assim se espera, não voltará. Dentro de meses, retomaremos a reconstrução do nosso mundo. Com menos dificuldade, ou de forma pesada e penosa. Recordemos aos que, em tom trágico, dizem “nada voltará a ser como antes”, o que era o mundo longínquo sem antibióticos, sem meios de diagnóstico, sem telecomunicações, ou o que era o mundo recente sem Serviço Nacional de Saúde (esse braço médico da opressão esquerdista, na visão da nossa amada direita). Estamos como Sísifo, o da mitologia grega. Que, depois de várias vezes ter enganado os deuses, foi por eles castigado a empurrar, durante a eternidade, um bloco de mármore até ao alto de um monte. Quando estava quase a conseguir, a pedra rolava encosta abaixo. Sísifo tinha de recomeçar. A situação repetia-se, sem cessar.

A nossa sina é a de Sísifo. Trata-se de recomeçar. Uma vez e outra. De pouco nos servem os lamentos e os queixumes. Usemos antes a tenacidade, a perseverança, o empenho, o esforço. Ao contrário de Sísifo, venceremos. Ainda que só por pouco tempo.

Crónica publicada em "A Planície"

Sísifo numa peça do séc. IV a.C. (Museu Arqueológico Nacional - Nápoles)

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