sexta-feira, 5 de junho de 2020

SINES – ALI NÃO HÁ NADA DO PERÍODO ISLÂMICO...

No final dos anos 70 do século passado, a arqueologia medieval era, tal como a televisão que nos entrava em casa, ainda a preto e branco. Era tudo muito sim ou sopas, de certeza ou nem pensar nisso. Num país sem arabistas portugueses dignos desse nome – creio que, hoje em dia (e pedindo desculpa por qualquer involuntária falha) apenas António Rei pode ser referido – os estudos islâmicos faziam-se a partir de dados físicos. Da arqueologia de terreno, que balbuciava as primeiras sílabas em Silves e, sobretudo, em Mértola. As limitações eram evidentes. Algum negacionismo imperava quanto à presença islâmica em vários sítios do sul, “há o período romano, depois não há mais nada até depois da Reconquista”.

Sem entrar aqui em detalhes inúteis, a verdade é que há, a sul do Tejo, muitos sítios romanos que conheceram ocupações importantes na Alta Idade Média, que se prologaram pelo período islâmico. Numa contabilidade grosseira, um pouco mais de dois terços dos fragmentos arquitetónicos da Antiguidade Tardia – muito tardia, por vezes... – concentram-se em três locais: Beja, Mértola e Sines. As duas primeiras conheceram importante ocupação no período islâmico, já para Sines se dizia “ali não há nada dessa época...”.

Há perto de 30 anos, criou-se “um facto arqueológico”. Cláudio Torres identificava Sines como sendo a Marsa Hashim das fontes islâmicas. Sendo que, desde Lévi-Provençal (1894-1956), se fazia coincidir esta última localidade com Castro Marim. O ponto de partida é um texto de al-Himiary, um autor magrebino do século XIV que se baseou em escritos anteriores. A sua obra tinha o extraordinário título de “O livro dos jardins perfumados” e dava-nos esta colorida descrição: “perto de Mértola, junto ao mar, encontra-se Marsa Hashim. É uma fortaleza antiga, onde se encontram ruínas antigas, assim como uma grande igreja que foi construída sob o reinado de César Diocleciano (Kasliyan). É ao reino deste imperador que remonta igualmente a igreja de Toledo”. Com desarmante simplicidade, Cláudio Torres baseava a hipótese da correspondência entre Sines e Marsa Hashim em dois argumentos: o filológico e o histórico-artístico. Em relação ao primeiro, a explicação era bem direta: marsa é porto em árabe e sines/hashim deriva do latim sinu- (enseada). O segundo era não menos claro. A enorme quantidade de fragmentos arquitetónicos de qualidade indiciava a nobreza de um edifício que ali existira.

E depois? Depois, nada. Cláudio Torres ouviu um nutrido coro de assobios e a sua proposta foi desvalorizada. Não faltou quem ridicularizasse a argumentação apresentada. Afinal, nunca se encontrara nada islâmico em Sines... Intimamente pensei “ele tem razão” e passei a citar o local da costa alentejana como Marsa Hashim. Era pouco lógico que um dos raros pontos de abrigo seguros entre Tróia e o Cabo de S. Vicente tivesse sido, pura e simplesmente, abandonado.

Em tempos recentes, a arqueologia tem vindo a detetar ribats (pequenos espaços fortificados destinados à oração e à vigilância da costa) no litoral: junto à praia da Maçãs, perto de Lisboa e perto de Arrifana, no concelho de Aljezur. A estes dois ribats, há que juntar outro, em Sines. Acabado de construir em maio de 1009, conforme atesta uma lápida descoberta junto ao castelo da cidade. A inscrição repõe a verdade e a lógica das coisas. Marsa Hashim é Sines. E não só o sítio teve ocupação em época islâmica, como era um sítio relevante.

Cláudio Torres bem podia recordar o célebre dito “quem ri por último...”. Não creio que perca tempo com isso.

Crónica publicada hoje, no "Diário do Alentejo"

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