Devem ter
passado quase 40 anos. O episódio passa-se em 1978 ou 1979. O João tinha uns
amigos de ar equívoco (estou a ser gentil...), que viviam na Porcalhota e que
um dia o convenceram a levar-me ao boxe. A regularidade dos eventos era
enigmática e a identidade dos pugilistas ainda o era mais. Num belo sábado à
noite, deixei-me conduzir, sem especial entusiasmo, até ao Pavilhão dos
Desportos. A minha falta de interesse foi compensada por uma noite memorável, e
da qual guardo impressivas recordações. Não havia muito público, que se
concentrava na bancada oposta à nossa, “ainda bem, que isto é capaz de dar
barraca”, disse o João entre dentes, e eu não percebi onde poderia estar a
barraca, a despeito de alguma agitação nos “tendidos”... Fomos para a parte de
cima das bancadas e foi uma má opção. O fumo sobe e como toda a gente
tabaqueava desalmadamente, às tantas aquilo parecia Londres, ouvi dizer que é
assim, que nunca lá fui. Nevoeiro cerrado e visibilidade limitada.
E eis que
entram os atletas. Grande e ruidoso entusiasmo “isto é boxe! isto é boxe”,
berravam as claques. Ainda não era, mas ia ser. No primeiro combate, entrou no
rinque, veloz, um boxeur, fazendo enérgicos exercícios de aquecimento e dando,
em jeito de cumprimento, um rodopio rápido à Alexander Zaitsev. “Este gajo é bom”,
sentenciou o João, fingindo sabedoria. Não era nada, o gajo era uma treta e,
mal se berrou “seguuuuuuundoooss
foraaaaa!”,
já tinha sido aviado pelo adversário, um careca com estilo de urso, que lhe
enfiou um banano de dimensões homéricas. Lá foi o Zaitsev numa padiola.
Recuperou depressa, ainda bem, mas o KO estava consumado. O segundo combate foi
mais complexo. Andaram para ali aos abraços o tempo todo e a decisão foi aos
pontos. “Oh pá, parte os cornos a esse
cabrão”, gritava um atrás de mim e nem me atrevi a virar a cabeça para trás.
Depois foi o bom e o bonito. O público discordou da decisão. Discordou é
maneira de dizer. Os adeptos das Águias da Musgueira resolveram treinar a nobre
arte com a claque da outra equipa, da qual não recordo o nome. Um combate de
boxe, todos contra todos, escada acima, escada abaixo, até chegar a polícia.
Estava consumada a barraca, que continuou enquanto a comitiva amadorense saía a
trote, em direção à segurança do ar livre. Fiquei sem saber o resultado, e os
jornais do dia seguinte ignoraram a agitação. Tristes tempos esses, em que não
havia reportagens da CMTV...
Não voltei ao
boxe. Hoje disso me arrependo. O mundo mudou e esse Portugal popular e de
chinela no pé é quase uma realidade distante. Hoje é tudo sério e “clean”,
ainda que só na aparência, porque quanto mais “clean” pior. Ouvi dizer. O boxe,
numa vertente mais rigorosa, acabou curiosamente por marcar pontos, por essa
altura. João
Manuel Miguel (Paquito) representou o nosso País nas Olimpíadas de Moscovo, em
1980. Foi derrotado, nos oitavos-de-final, pelo futuro campeão, o soviético
Shamil Sabirov.
Já
passaram muitos anos. Demasiados, poderei dizer. Ainda hoje recordo o som da
multidão aos urros “isto é boxe”, o ambiente toldado, os pugilistas de
qualidade duvidosa, duvidosa é favor, as claques numa cena de pancadaria
medonha, e a voz protetora do João “vamos embora enquanto é tempo”.
Se tenho
saudades? Não tenho. Mas acho graça lembrar episódios assim…
Crónica publicada em "A Planície" de 1.3.2016
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