sábado, 17 de janeiro de 2015

A MINHA LAREIRA

Post particular para alguns amigos que conheceram a casa. Com um texto de Raul Brandão (1867-1930), autor que se "estreia" no blogue.

Já tinha visitado o sítio muitas vezes. Mas nunca, até há três dias, reparara que o espaço de vendas da Cooperativa Agrícola de Moura e Barrancos tinha uma lareira. Não é uma lareira qualquer. É a minha lareira. Naquela casa, hoje muito modificada e onde os traços de outrora desapareceram, viveram os meus avós. O meu avô era o porteiro da Sociedade dos Azeites. Depois de reformado, arranjou aquele trabalho. Ali viveram durante 7 anos. Naquela casa passei longas horas. Ali dormi muitas vezes e ali li os primeiros livros e escrevi as primeiras redações. Misteriosamente, nunca, em tempos recentes, tinha olhado para aquele sítio, bem à vista, onde a minha avó cozinhava e onde tantas vezes me aqueci. Mas aquela é a minha lareira, sem dúvida que sim.



O frio é mortal e durante dias me persegue esta imagem cinzenta, feia e gelada. Até que recomeça a chover, a chover de mansinho e nunca mais despega…

É então que eu gozo… Aconchega-te e sonha. Sonha à tua vontade, sem limites. Acende a fogueira e ouve-a cantar lá fora, descer em enxurradas, passar em trombas com o vento e pingar dos beirais. Esquece o mundo, esquece a vida e deixa-te reluzir por dentro como os troncos secos que ardem na lareira… Agora é mansa e musical - bate devagarinho nas vidraças. Há momentos em que me chama. Ouço um grito ao longe… Avança com arrancos e desperta-me… Por fim o aguaceiro passa, as janelas sossegam - sch!... sch!... (Como tudo está calado!). Fica um pingo que se não sabe donde cai, um som de flauta perdido entre os pinheirais solenes e distantes…

in Raul Brandão, Memórias, III, obra editada após a morte do escritor.

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