"Ah,
esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração! Bem
recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do
candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um
jornal da tarde. Em torno da mesa, outras senhoras costuravam.Espalhados pelas
cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido
serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro
das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos
lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela
violência da natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a terra.
.
Ela lia as catástrofes,
lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil
latino. «Na ilha de Java, um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil
pessoas …». As agulhas atentas picavam os estrofos ligeiros; o fumo dos
cigarros rolava docemente na aragem mansa; e ninguém comentou, sequer se
interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa!
Depois, mais perto, na Hungria, «um rio transbordara, destruindo vilas, searas,
os homens e os gados…». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que
desgraça!». A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma,
aureolada pelo oiro da luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que
as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas
criancinhas…
.
Então, aqui e além, na
aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que
horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de
entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal
atulhado de males. E ela mesma então teve um oh de dolorida surpresa. No sul da
França, «junto à fronteira, um trem descarrilado causara três mortes, onze
ferimentos…». Uma curta emoção, já sentida, já sincera, passou através de nós
com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio
que desce a Portugal, onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões
já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
.
A leitora, tão cheia da graça, virou a página do jornal
doloroso e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e
sereno… E, de repente, solta um grito e leva as mãos à cabeça:
– Santo Deus!...
Todos
nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
– Foi a Luísa Carneiro, da Bela-Vista… Esta manhã!
Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se
alvoroçou num tumulto de surpresa e desgosto.
As
senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltronas; e
todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor
que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado
correra, furiosamente, para a Bela-Vista, buscar notícias por que ansiávamos.
Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com
aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
.
Dois
mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando
crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo
desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa
Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha
– e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande
mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume.
"
Eça de Queirós in Cartas Familiares e Bilhetes de
Paris (1907)
Da abominável chacina de Paris aos repetidos massacres na Nigéria (2000 mortos em Baga) há dois passos de distância: um é geográfico, o outro é cromático.
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