segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

QUANDO A LUZ SE APAGA


Quando me preparava para entregar aquela prenda de Natal, numa instituição de solidariedade, estaquei. À minha frente estava um homem, na casa dos 80. Olhava em frente, fixamente. Perdera a visão. E deixara para trás a capacidade de perceber o mundo. A funcionária que me acompanhava comentou, em voz baixa, desnecessariamente baixa, porque ele não nos ouvia, “este é o nosso retrato futuro”. Uma frase certeira e cortante. O que me deixou gelado não foi a velhice, nem a saúde frágil do homem. Nem o alheamento em que vivia, fechado que estava num mundo distante. O que me deixou sem reação foi o facto de eu supor que ele há muito morrera. Uma quase verdade, ainda mais penosa, naquele fim de tarde com pouca luz. Tive vontade de lhe dizer “sou o Santiago, lembra-se de mim?”. Contive-me. Não me via, nem me ouviria. Provavelmente não se lembraria. Muitos anos antes, não seria necessária aquela pergunta. Cruzava-me com ele quase todos os dias, nas ruas de Moura, “está bom, senhor fulano?”. Ele tornava, sempre sorridente, “olá Santiago, tás bom? vê lá se te portas como deve ser, ou vou dizer ao velho João...”. O velho João não era velho, nessa altura, e a velhice estava, para todos nós, ainda demasiado longe.

Aquele senhor, que eu pensava desaparecido neste mundo, está na casa dos 80, eu passei os 50. O tempo acelera-se, com o passar dos anos. Um fenómeno de perceção, incompatível com a medição dos relógios. Cruzo-me todos os dias com jovens do meu bairro. Por razões evidentes, sou hoje mais cumprimentado do que era há três ou quatro anos. No outro dia, pela manhã, quando ía descendo a ladeira da Salúquia, fui assombrado pela imagem do senhor com quem em tempos me cruzava. Ao entrar no restaurante, horas mais tarde, olhei para o moço que, de ar jovial, servia os clientes. Um dia mais tarde, muito mais tarde para ele, visitará, decerto, senhores de olhar perdido e fechados no seu mundo, talvez eu, para quem a luz se apaga aos poucos, sem remissão nem retorno. A vez dele chegará. Mais tarde. Ou, pelos padrões que ele tem hoje, impensavelmente mais tarde.


ERRATA – No meu anterior texto, escrevi “ruas projetadas não temos” [em Moura]. Temos, pois. Até mais que uma. Em todo o caso, em breve deixaremos de ter, uma vez que está em marcha o processo de atribuição de nomes.

Crónica publicada em "A Planície" de 1.2.2015

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