Quando me
preparava para entregar aquela prenda de Natal, numa instituição de
solidariedade, estaquei. À minha frente estava um homem, na casa dos 80. Olhava
em frente, fixamente. Perdera a visão. E deixara para trás a capacidade de perceber
o mundo. A funcionária que me acompanhava comentou, em voz baixa,
desnecessariamente baixa, porque ele não nos ouvia, “este é o nosso retrato
futuro”. Uma frase certeira e cortante. O que me deixou gelado não foi a
velhice, nem a saúde frágil do homem. Nem o alheamento em que vivia, fechado
que estava num mundo distante. O que me deixou sem reação foi o facto de eu
supor que ele há muito morrera. Uma quase verdade, ainda mais penosa, naquele
fim de tarde com pouca luz. Tive vontade de lhe dizer “sou o Santiago,
lembra-se de mim?”. Contive-me. Não me via, nem me ouviria. Provavelmente não
se lembraria. Muitos anos antes, não seria necessária aquela pergunta.
Cruzava-me com ele quase todos os dias, nas ruas de Moura, “está bom, senhor
fulano?”. Ele tornava, sempre sorridente, “olá Santiago, tás bom? vê lá se te
portas como deve ser, ou vou dizer ao velho João...”. O velho João não era
velho, nessa altura, e a velhice estava, para todos nós, ainda demasiado longe.
Aquele
senhor, que eu pensava desaparecido neste mundo, está na casa dos 80, eu passei
os 50. O tempo acelera-se, com o passar dos anos. Um fenómeno de perceção,
incompatível com a medição dos relógios. Cruzo-me todos os dias com jovens do
meu bairro. Por razões evidentes, sou hoje mais cumprimentado do que era há
três ou quatro anos. No outro dia, pela manhã, quando ía descendo a ladeira da
Salúquia, fui assombrado pela imagem do senhor com quem em tempos me cruzava.
Ao entrar no restaurante, horas mais tarde, olhei para o moço que, de ar jovial,
servia os clientes. Um dia mais tarde, muito mais tarde para ele, visitará,
decerto, senhores de olhar perdido e fechados no seu mundo, talvez eu, para
quem a luz se apaga aos poucos, sem remissão nem retorno. A vez dele chegará.
Mais tarde. Ou, pelos padrões que ele tem hoje, impensavelmente mais tarde.
ERRATA – No
meu anterior texto, escrevi “ruas projetadas não temos” [em Moura]. Temos,
pois. Até mais que uma. Em todo o caso, em breve deixaremos de ter, uma vez que
está em marcha o processo de atribuição de nomes.
Crónica publicada em "A Planície" de 1.2.2015
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