Estive na Síria na primeira quinzena de outubro de 2003. A viagem foi feita em total liberdade, à margem de excursões organizadas. O António Cunha, o motorista Fahd Kanara e eu percorremos o país de norte a sul, da fronteira turca à jordana. Uma viagem extraordinária e irrepetível. Dela dei breve testemunho em livrinho editado em junho de 2005. O texto que aqui se reproduz é o desse livro. Foi, curiosamente, o primeiro post do blogue, em 10 de dezembro de 2008.
Foi com grande constrangimento que vi, há pouco, a destruição numa rua junto à cidadela de Alepo, onde passei várias vezes. A fotografia (de Omar Sanidiki, para a Reuters) contrasta bem com a outra, por mim feita a partir da cidadela, no dia 4 de outubro de 2013.
Na rua que conduz a Bab Sharqi, em
Damasco, conserva-se parte de um arco de triunfo romano. Só o arco nos faz
recuar aos dias em que S. Paulo viveu naquela rua. O resto há muito deixou de
existir e a procura de uma cidade desaparecida torna-se um jogo de imaginação.
Talvez Paulo de Tarso passasse todos os dias debaixo do arco de triunfo romano,
sobre o qual se passeia agora um gato de ar preguiçoso. Mas aquele monumento é
apenas um testemunho raro de uma época esquecida e a História deixa-nos sem
respostas na esquina da rua, a que leva a Bab Sharqi, e que está deserta no fim
da tarde de sexta-feira.
Dos dias da Damasco romana ficaram
alguns monumentos, menos à vista do que poderíamos esperar. As cidades que se
lhe seguiram foram ocultando as anteriores e os roteiros turísticos que os
poucos visitantes cumprem, religiosamente, guiam-se, quase só, pela cidade dos
últimos 300 anos. Mas a geografia de uma cidade não é um mapa para turistas e a
topografia dos sítios não se segue, encontra-se. Uma rua à direita, duas à
esquerda, ao acaso e à toa, à procura de respostas.
As ruas de uma cidade são terra firme.
Dá prazer deixarmo-nos levar, uma rua à direita, duas à esquerda, sempre ao
acaso. Não nos perdemos, porque as trepadeiras das ruas de Damasco, a
cruzarem-se nas pérgolas à nossa frente, já um dia as vimos, mas não sabemos
onde. Talvez num sítio longe de Damasco. São talvez ruas sonhadas ou já vistas.
Muito do passado de Damasco está hoje
escondido em bairros recônditos ou quase desapareceu. As cidades não são uma
realidade imóvel e imutável. Menos ainda quando falamos de sítios como este,
ocupados há milénios e abalados de tempos a tempos por convulsões, pelas dos
homens e pelas que surgem das entranhas da terra. O correr dos anos, o simples
martelar do sol e da chuva se encarregaram de fazer o resto. É por isso que a
topografia antiga de Damasco há muito se modificou e da cidade onde viveu São
Paulo só restam o arco romano na rua que vai para Bab Sharqi, a entrada
oriental da cidade, a colunata à saída do souk Hamidieh e algumas das paredes
da grande mesquita dos omeias.
É na mudez das pedras que está a
resposta a tantas questões. São elas que nos contam o que os textos escritos
tantas vezes omitem, por desconhecimento, por convicção ou por conveniência.
Entre Bosra e Qalb Lozeh, desde a desolação da estepe de Qasr ibn Wardan até ao
oásis de Palmyra é sempre nas pedras onde a História foi gravada que procuramos
os relatos do passado. William Henry Waddington escrevia, no final do século
XIX, que a causa da destruição dos monumentos antigos da Síria se devia aos
muçulmanos e aos cristãos, que tinham usado os edifícios mais antigos como
matéria-prima para erguer novas construções. Explicação simplista mas, em
grande parte, certeira. Assim se destruiu e se refez, em cada dia, o percurso
da História.
A Síria Antiga guarda-se nos museus de
Damasco e de Alepo. E nos das antigas capitais coloniais do Ocidente, que
pilharam, com método e eficácia, um solo inesgotável. Os mosaicos e algumas das
colunas de Apameia estão hoje no Museu de Bruxelas. A maior parte da colunata
está no local de origem, ao longo da grande avenida que atravessa a cidade. Ao
cruzarmos o Orontes e ao chegarmos às ruínas de Apameia esperam-nos dois
quilómetros de avenida deserta, guardada por gigantes de sete metros de altura,
perfilados no centro de uma cidade com 255 hectares. A desolação e o silêncio
de Apameia tornam-se mais evidentes no fim da tarde, quando a luz se começa a
desvanecer e quando tentamos imaginar e refazer a cidade que outrora ocupou
aquele planalto e da qual não restam mais que as colunas e o espólio que os
ocidentais pilharam.
O coração da Síria Antiga está em
Palmyra. A saga de Palmyra é notável, e inclui um desafio a Roma e uma
independência ganha por pouco tempo. Roma ficava muito longe e a cidade, no
meio do seu oásis, a meio caminho entre o Eufrates e o Mediterrâneo, não
resistiu à tentação da liberdade. Quatro anos durou a aventura (268-272), tempo
curto mas que chegou para imortalizar a cidade e Zenobia, a sua rainha. Os
idiomas oficiais em Palmyra eram o grego e o aramaico. O grego ficou nas pedras
e já só interessa aos epigrafistas, aquelas pessoas que transformam a história
de outras pessoas em traços e símbolos e em fórmulas de gramática. O aramaico
cruzou milhares de anos, tornou-se numa ilha de sons que muito poucos entendem
e já só é falado em duas ou três aldeias das montanhas do Kalaamoun.
Palmyra é um mostruário de arquitraves,
de fustes, de capitéis, de recordações de uma cidade perdida. Chega-se ao oásis
de Palmyra depois de cruzar o deserto da Síria, entra-se na cidade pelo
ocidente, pela zona onde está o vale dos túmulos. Para lá das ruínas e da
cidade nova fica a frescura do oásis. As azinhagas que o cruzam estão, contudo,
tão abandonadas como a alameda de Apameia. As hortas, que podiam ilustrar algum
relato bíblico ou das Mil e Uma Noites, já pouco produzem, e o rumor da gente
que outrora se ouvia pelos vergéis deu lugar ao som dos passos de alguns
viajantes mais curiosos. São eles quem franqueia os campos de cultivo, por
entre muros que não voltarão a ser reparados e no meio de um silêncio terrível,
já só quebrado pelo som dos passos dos que percorrem o oásis à sombra das
palmeiras.
O coração de uma Síria intemporal vive
em Alepo. Cerca de mil metros separam Bab Antakyah e a cidadela. Em mil metros
mergulhamos na máquina do tempo, num souk que saiu das páginas de um texto
antigo. O barulho, os pregões, a venda de tecidos repetem-se sem cessar há
muitos anos e já um dia ouvimos as vozes dos vendedores do souk de Alepo mas
não sabemos onde. Os vendedores, que repartem o espaço com um rigor de geometra,
têm centenas de anos. O tempo não passou por eles porque estão resguardados do
sol e da luz do dia pela penumbra do souk. O que se vende é tão antigo como o
souk, como os sabões de azeite e palma que fizeram a fama de Alepo.
Para lá dos mercados, para além dos
monumentos e da História Antiga começa a outra Síria. Aceitemos a hospitalidade
do Oriente enquanto o turismo não chega. Aceitemos o chá que nos oferece
Muhammad Kadr al-Kadr, o guarda do forte bizantino de Qasr ibn Wardan. Entremos
na casa de Brahim Abu Radwan, na aldeia de as-Srouje. Sentemo-nos na sua casa e
ouçamo-lo contar a história da sua vida, os anos duros da emigração no Dubai, o
regresso à aldeia, a compra de 50 ovelhas e de umas oliveiras. Partilhemos uma
refeição de pão e azeite com a família de Lufte Naasif, na aldeia druza de Qalb
Lozeh. É uma conversa feliz, feita de muitos silêncios, que se prolonga durante
duas horas e poucas vezes, como dessa vez no norte da Síria, estive tão perto
de casa. Aceitemos as duas romãs que um rapazito nos oferece à entrada do sítio
de Aïn Dara enquanto nos diz “sou curdo”, a vida, o orgulho e o passado de cada
comunidade a fazerem-se sentir em cada esquina. Acompanhemos Margarita Curché
pelas ruas do bairro cristão de Damasco, por entre as igrejas e as mesquitas
que partilham as mesmas ruas, por vezes muito perto, por vezes mesmo lado a
lado. Não nos espantemos quando ela cerrar o punho em desafio e clamar em voz
alta “aqui somos todos cristãos!”. Margarita refere-se ao bairro, mas o seu
bairro é o seu mundo, um mundo que fica junto a Bab Touma, no extremo nordeste
da cidade antiga.
Em tempos que já lá vão, a rota de ouro do comércio mediterrânico começava em Sevilha, tocava os portos da Tunísia e ia terminar lá longe, em Alexandria ou em Antioquia. Era um percurso que todos os mercadores conheciam e que várias vezes ao longo do ano tinham que percorrer. À Península Ibérica vinham buscar a prata que faltava a Oriente. Para a Península Ibérica traziam os tecidos e os perfumes que iriam tocar o corpo das andaluzas mais belas. Ou das mais ricas.
Lá longe, para lá de
Antioquia, existe ainda ainda um pouco desse mundo. Fica fora das fronteiras da
Europa, cada vez mais longe do Ocidente. Às portas do Levante, o ar do
Mediterrâneo começa a dar lugar à aridez do deserto. É aí que começa a Síria,
onde o Mediterrâneo acaba e até onde chegam as oliveiras. A algumas jornadas do
mar fica o oásis de Palmyra e, mais para leste, a imensidão da Mesopotâmia.
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