"UM AMARGO DIA MUNDIAL DA POESIA"
Por José Luiz Tavares
Ontem, dia mundial da poesia (e da luta contra a discriminação racial), dirigi-me à Casa Fernando Pessoa, em campo de ourique, onde se ia proceder à leitura de Tabacaria em língua caboverdeana e ao lançamento duma edição bilingue, promovida por uma associação de afro-descendentes de lisboa. Afazeres pouco poéticos fizeram com que eu chegasse alguns minutos depois da hora aprazada para o início da sessão. Uma tarjeta amarela, em inglês e português (Pessoa teria gostado), avisava que não seriam permitidas mais entradas. Remoendo as minhas razões, resolvi tocar à campainha. Logo um diligente vigilante acudiu à porta, dizendo educadamente que por razões de segurança não seriam admitidas mais entradas.
Não sei quem dirige hoje a Casa Fernando Pessoa, nem quem lá trabalha, mas pedi ao vigilante se podia chamar alguém responsável, pois poderia ser alguém que eu conhecesse, dado que em tempos fui assíduo frequentador da Casa, concebi um programa para uma quinzena da cultura caboverdeana, fui convidado de um dia mundial da poesia, onde recitei excertos da Ode Marítima taduzida por mim para caboverdeano (numa casa cheíssima, com gente até nas escadas), fui convidado de um «Dias do Desassosego», com escritores brasileiros e portugueses (sendo um 10 de junho, fiz a minha abertura com um soneto de Camões traduzido por mim para caboverdeano), a biblioteca da casa possui alguns dos meus livros, por mim oferecidos, sou tradutor de Pessoa para o caboverdeano, utilizando o seu alfabeto oficial (uma antologia intitulada Na Sol di Nhas Angústia esteve pronta para sair em 2007, aquando da passagem de Francisco José Viegas pela casa e ainda hoje aguarda edição), ainda a semana passada o número de inverno da revista LER, dirigida pelo mesmo Fancisco José Viegas, publicou uma montagem minha da Ode Marítima em caboverdeano, razões não para ter algum tratamento privilegiado, mas apenas justificativas do interesse que eu tinha naquela sessão onde seria lido e apresentado Tabacaria na minha língua materna, poema que eu próprio traduzi em 2007, e que aqui vos ofereço na versão de então.
Passados instantes entrevi, pela fresta da porta meio aberta, uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança...». Gostei muito, eu simples poeta, de ser tratado por «cavalheiro», pois a minha aparência não deixava dúvidas: devido ao frio eu vinha trajado de sobretudo castanho-claro, finas luvas castanho-escuro, cachecol verde-escuro, chapéu preto à Pessoa. Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cujo tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. Sorri mais uma vez, com um sorriso triste, alvitrando, para meu consolo, que talvez se tratasse do múltiplo Fernando, reencarnado, não heteronimicamente mas em carne e osso, em femininas figuras, e teria vindo indagar ao que vinha tanta gente de pele escura e linguajar estranho.
Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues. Foi no bairro de campo de ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.
Lisboa, 22 de março de 2018,
José Luiz Tavares
Talvez tenha sido só uma coincidência. Talvez se lá fosse eu também me acontecesse a mesma coisa. Que José Luiz Tavares tenha razões para pensar que foi discriminação pura e dura, disso não duvido eu.
Sem comentários:
Enviar um comentário