TÃO FELIZES QUE NÓS ÉRAMOS, por Clara Ferreira Alves
Neste filme a
preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo
português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos
orgulhosamente sós
Anda por aí
gente com saudades da velha portugalidade. Saudades do nacionalismo, da
fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias
do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos
soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos
espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar
obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro,
dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança.
Eu não ponho
flores neste cemitério.
Nesse Portugal
toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos.
No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no
estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe
indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder
aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de
pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia
observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo
não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma
mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia
vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a
prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um
luxo. A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma
agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras,
maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns
preciosos pêssegos. As frutas tropicais só existiam nas mercearias de luxo da
Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido em fatias fininhas para
render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para render mais. Como não havia
educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta,
comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças
que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho. A criança crescia
com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por
falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância,
de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância,
como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos, era normal.
Tive dez e morreram-me cinco. A altura média do homem lusitano andava pelo
metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria
cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver
os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.
Amortalhado a
negro, o povo era bruto e brutal. Os homens embebedavam-se com facilidade e
batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes
que apareciam nos jornais com o título ‘Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos’.
A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de
pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam
as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia
filhos bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em
putas. As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos
estudiosos eram mandados para o seminário. Este sistema de escravatura
implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e
viviam pelas traseiras. O trabalho infantil era quase obrigatório porque não
havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e
eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter
passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do
mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um
império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a
Badajoz, a comprar caramelos e castanholas. A fronteira demorava horas a ser
cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado
pelos guardas e o suborno era prática comum. De vez em quando, um grande carro
passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar-se à burocracia do
regime que instituíra uma teoria da exceção para os seus acólitos. O suborno e
a cunha dominavam o mercado laboral, onde não vigorava a concorrência e onde o
corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava favores a
quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura
aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos
eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e
clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem
de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco
da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a
religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte,
evidentemente.
Não simpatizo "excessivamente" com CFA. Mas este texto é certeiro. Mais ainda quando "historiadores" e "politólogos" cantam hossanas aos progressos económicos de Portugal antes do 25 de abril dá (sempre!) vontade de perguntar de que Portugal falam. Ou se o Portugal abrangido por tão brilhante desempenho se cingia ao eixo Lisboa-Cascais.
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