quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

1973, UNS DIAS ANTES DO NATAL

Há sempre, nesta altura do ano, quem venha recordar os natais dos tempos de infância. As idas à Missa do Galo, os cânticos, a neve. Nascido numa família laica nunca fui à Missa do Galo nem lá em casa se celebrava o natal religioso. Nem quase o outro, que as prendas no sapatinho tinham um significado muito diferente do de hoje. Sem que o soubéssemos era um natal pagão, o assinalar do solstício, a família reunida e nada mais.
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De todos os natais lembro-me, com pormenor, do de 1973. Apenas desse. A avó Luzia piorava de mês para mês e fomos visitá-la a Madrid, onde vivia desde há muitos anos. Em Navalcarnero, a 70 kms. da capital começou a nevar, e foi essa a primeira das três ou quatro vezes em que até hoje vi neve. Era dia 19 de Dezembro, fazia muito, muito frio, e nada fazia prever o que se avizinhava.
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No dia seguinte de manhã, a Avenida Menendez Pelayo era um pandemónio de carros da polícia. “Mataram o primeiro-ministro”, dizia-se em cada loja e em cada esquina. A pouco mais de dois quilómetros da casa da avó Luzia, um comando da ETA acabara de fazer voar o carro do almirante Luis Carrero Blanco, o novo homem forte do regime.
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Pudémos ir ver o sítio pouco depois. A espectacular operação deixara marcas bem visíveis. Cem quilos de explosivos colocados sob o pavimento da rua tinham aberto um gigantesco buraco no pavimento da calle Claudio Coello. Supremo requinte, tinham-se dado ao pormenor de pintar um traço vermelho na parede para controlarem o momento em que o Dodge blindado do almirante passava sobre o explosivo. Durante meses, tinham escavado um túnel sob a rua (eram escultores, diziam à vizinhança para justificarem o som das pás e picaretas) até ao momento em que Carrero Blanco saiu da missa e o enorme carro negro foi pelos ares, sobrevoou o telhado do convento, num salto de dezenas de metros, e tombou com fragor no claustro onde Carrero estivera minutos antes. O tio António, padrasto do meu pai, levou-me até lá em silêncio. Combatera na guerra civil pela Falange e talvez, no íntimo, suspeitasse que aquele insólito voo do almirante simbolizava o fim de uma época.
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No fundo da cratera repousava uma coroa de flores. Há coisas que um miúdo de dez anos jamais esquece: aquele buraco lamacento junto à esquina com a calle Maldonado, as fotos do carro caído de lado e amassado no pátio do claustro, a ausência de Franco no funeral (“síndrome gripal” garantia o Ya, jornal do regime, mas toda a gente dizia que o velho estava borrado de medo), o frio da rua naquela primeira manhã de Inverno.
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O regime desfazia-se. Nos meses seguintes os taxistas madrilenos permitiam-se mesmo um humor negro de gosto duvidoso. Quando alguém pedia para ir para ir à calle Claudio Coello era brindado com a pergunta “E a que altura o levo?”.
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Estranhamente, não recordo que prenda tive nesse natal nem se havia presépio ou não. O atentado marcou aquela quadra sem que os anos apaguem tantos e tantos pormenores inúteis.
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Apesar do envolvimento da ETA os anos seguintes levantaram, como sempre sucede, teorias conspirativas, como a da suposta participação da CIA. No meio de tudo nunca se descobriu a identidade do “homem da gabardina branca” que terá entregue, à entrada de um hotel, os horários e os caminhos usados por Carrero Blanco. A pessoa que o poderia identificar foi assassinada por um comando de extrema-direita em 1978, o que só veio adensar o mistério.
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Nos anos seguintes as coisas mudaram. Portugal em 1974, a Espanha pouco depois, encontraram as rotas da liberdade. O meu último natal em Madrid foi em 1974, no nº 63, 4º F, da Menendez Pelayo. O cancro venceu a avó Luzia pouco tempo depois e Madrid deixou de ser sinónimo de casa mas sim outra cidade onde passei a ir apenas de tempos a tempos. E não tanto quanto gostaria. Na calle Claudio Coello, em frente ao nº 104, está hoje uma placa que assinala a morte de Carrero, num acontecimento que marcou a história de Espanha e que marcou de modo indelével os meus dias de infância.

Esta crónica foi publicada no jornal A Planície mas não tenho aqui a data...




O almirante Luís Carrero Blanco (1903-1973) foi o último primeiro-ministro do franquismo. O ditador faleceu menos de dois anos depois. E Arias Navarro já não conta nesta história.

8 comentários:

Anónimo disse...

Julgo que este post tb foi publicado na Jornal "A Planície"...

Santiago Macias disse...

Bom dia.

Justamente. Isso está escrito no post ("esta crónica foi publicada no jornal A Planície mas não tenho aqui a data..."). Costumo ficar com registo da data de edição mas esta falhou. Qualquer ajuda é bem-vinda.

Cumprimentos
Santiago

Anónimo disse...

ETA ou CIA ?

Anónimo disse...

Libro "Los Protocolos, Memoria Histórica", de Guillermo Buhigas Arizcun, páginas 170 y 173

Santiago Macias disse...

Uma das partes interessantes dos blogues é esta possibilidade de falarmos com outras pessoas (ainda que por vezes anónimas) e de sabermos mais coisas:
1. ETA ou CIA? Um atentado político desta violência levanta e levantará sempre questões.
2. Não conheço o livro mas irei conhecer. Obrigado.

Anónimo disse...

Los terroristas desayunaron en la Cafetería Chikito

Anónimo disse...

El Almirante iba de Hermanos Bécquer 6 a Paseo de la Castellana 3, pasando por la Iglesia de los Jesuítas de San Francisco de Borja, Calle Serrano 104

Anónimo disse...

El 20 de diciembre de 1998 Carlos Dávila entrevistó, en Retevisión, Carmen Carrero Pichot